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A Efígie de Umbra

 

Não existe maior arma do que o medo. As feiticeiras umbrianas conhecem isso muito bem. É sua maior arma e elas aprendem a usá-la desde muito cedo, ensinadas por suas mães, irmãs, tias e primas. Eu também conheço o medo, talvez até melhor do que elas, por estar do outro lado da moeda.

O medo é quem eu sou; é o que me mantém vivo e respirando. Desde cedo, eu já tinha meu lugar definido no mundo. E minha família me ensinou a permanecer nele. Eu nasci no Clã Amaranth, portanto sou um dos homens mais privilegiados de Umbra; se não fosse, com certeza já estaria morto há muito tempo. Eu nasci para servir às Amaranth e é isso que tenho feito. A obediência é meu escudo; é ela quem me mantém vivo, tanto quanto o medo.

Em Umbra, meninos são um mau presságio por si só. Incapazes de se tornarem feiticeiras, estão fadados a uma vida de sacrifícios, servindo apenas como ferramentas para as mulheres do seu clã. Muitas mães costumam fazer sacrifícios à Deusa da Morte, implorando que sua criança não nasça homem, e quando isso acontece é sempre uma decepção para toda a família.

Também é muito comum que os bebês meninos sejam sacrificados ainda recém-nascidos, como oferenda à Deusa, para que a próxima gravidez traga frutos melhores. Algumas mães, porém, preferem deixar seus filhos crescerem alguns anos antes de entregá-los à Deusa da Morte, como acólitos. Para o bem ou para o mal, minha família escolheu me deixar viver, ao menos por enquanto.

Meu nome é Evans e tenho 14 anos. Sou franzino, de altura mediana, pele escura e cabelos e olhos castanhos, como todo umbriano. E como todo umbriano, eu nasci sob a estrela amaldiçoada da Deusa da Morte. Vivi sob a sombra do medo, sentindo a todo tempo a presença Dela, respirando sobre o meu ombro direito, aguardando o momento em que finalmente me levaria embora para sempre.

Nós não dizemos o nome Dela. O nome da Deusa só pode ser proferido pelo Sacerdote da Morte, a única pessoa viva que não a teme, pois já lhe entregou sua alma e não tem mais nada a perder. Eu a temo como todos os outros e prefiro não falar dela. Ainda assim, sei que vou encontrá-la um dia.

Os homens de Umbra não vivem muito, com exceção do Sacerdote. Há apenas um Sacerdote por vez, e ele precisa ser um homem: a Deusa não se comunica através de mulheres. Há também os acólitos, mas todos eles são sacrificados ao completarem 21 anos, enquanto o Sacerdote mantém seu posto até o dia de sua morte. A única maneira de um acólito ter uma vida longa é se tornando o próximo Sacerdote.

Eu, porém, não sou sequer um acólito.

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Já é quase inverno, uma época difícil para o mundo, mas especialmente difícil para os umbrianos. Os pântanos oferecem pouco conforto no verão, com suas epidemias e as enchentes, mas no inverno as coisas são muito piores. Não há vida visível por quilômetros e qualquer um que se perder pelos pântanos encontrará somente a morte. Os animais selvagens também estão magros e famintos e matarão qualquer coisa que se mover. E, assim como os animais, os seres humanos nessa época farão barbaridades para se manterem vivos. É a lei da natureza; o mais forte subjugando o mais fraco. E eu, sendo um jovem umbriano, sempre fiz parte do segundo grupo. Além disso, as plantas não crescem no solo congelado, e aqueles que não conseguem encher seus armazéns durante a estação da colheita são visitados primeiro pela fome, depois pelo frio e enfim pela morte.

As Amaranth, porém, não tem problemas tão mundanos quanto esses. Como o maior clã de Umbra, nossa família tem grande influência sobre todo o reino; nossas garotas têm uma vida abastada e não enfrentam as dificuldades que o povo comum precisa suportar. Especialmente em Histeria, capital de Umbra, a palavra dos Amaranth é lei. Não há nada nem ninguém que ouse nos questionar e todos os outros clãs da cidade abaixam suas cabeças para nós. Nunca nos falta comida, muito menos conforto. E como as boas feiticeiras que são, as garotas Amaranth não tem receios de sacrificar os outros para satisfazer suas necessidades.

Todos sabem disso. Por isso as temem. E eu não sou exceção.

Como um Amaranth, fui criado junto com minha irmã e minhas primas. Quando pequeno, brincava junto delas nos jardins de Histeria, ainda que minhas tias não gostassem que elas perdessem seu tempo comigo. Éramos sempre 4: eu, minha irmã Hazel e nossas primas mais velhas, Samantha e Morgana.

Hazel sempre esteve correndo atrás das duas, como um cachorrinho. Elas, por outro lado, a viam como uma discípula fiel. Morgana, a mais velha, era nossa líder quando os adultos não estavam. Samantha, por sua vez, nunca gostou de ser a segunda e perdi a conta de quantas vezes já fui envolvido nas brigas das duas irmãs Amaranth. Já Hazel sempre foi precoce e aprendia tudo com as primas. Por causa disso, ela cresceu orgulhosa e cheia de talento.

Hoje, Morgana tem 21 anos e Samantha, 16. Diferente da irmã mais velha, que sempre desejou ser nossa herdeira, seus interesses são outros. Enquanto Morgana me trata com frieza, me lembrando do meu lugar, Samantha tem uma estranha atração por mim, preferindo minha companhia à das outras garotas. Muitas vezes brincamos de bonecas só ela e eu, longe dos adultos e de outras crianças. Conheço suas bonecas tão bem quanto a própria Samantha; sei o nome de todas, muitas já foram minhas, antes de minhas tias as tirarem de mim.

Samantha também gostava de brincar de casinha, fingindo que era a senhora de Histeria e eu, seu amante. Às vezes era carinhosa comigo, me enchendo de beijos e abraços; às vezes me batia até eu sangrar ou me trancava nos calabouços por horas. Por causa disso, sempre tive pavor de ficar sozinho com ela, preferindo até mesmo a presença de Morgana, que era cruel, mas também previsível.

Diferente de mim, minhas primas tiveram treinamento nos ofícios do Clã. A crueldade nelas floresceu cedo: um atributo valoroso para uma feiticeira Amaranth. Sem ela, como poderiam fazer seus sacrifícios para a Deusa da Morte? Isso aumentou o abismo entre nós; não demorou para que elas me enxergassem como aquilo que sempre fui: um criado e uma ferramenta a ser usada.

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Me lembro muito bem do dia em que minha irmã, Hazel, ganhou sua faca cerimonial. Já faz mais de dois anos. A faca é parte essencial do ritual de maioridade, que toda feiticeira passa quando completa 12 anos. Naquele dia, meu sangue foi oferecido à Deusa, por mais que eu tenha gritado e chorado aos seus pés, pedindo para ser poupado. Não me orgulho da minha fraqueza, mas tenho muito medo da morte; outros homens e garotos enfrentaram os rituais com a cabeça erguida, levando muitos minutos para começarem a gritar, mas sei que eu jamais conseguiria.

Apesar de ser filho do clã mais poderoso de Umbra, eu sou um covarde. E quando minha irmã veio me fazer sangrar, eu me humilhei de todas as maneiras que imaginei. Tudo o que queria era que escolhessem outro para sangrar por mim.

Se fosse apenas minha irmã, talvez ela tivesse me poupado; Hazel não é tão ruim comigo, não como minhas primas: ela já me defendeu muitas vezes. Mas na presença das minhas tias e avó, as maiores bruxas de Umbra, Hazel foi implacável. Eu sangrei durante horas enquanto as feiticeiras dançavam e cantavam ao redor do fogo. Outros sacrifícios menos preciosos perdiam suas vidas no caldeirão, cozidos vivos. Homens de vassalos menores dos Amaranth. Naquele dia, tive a certeza de que morreria, mas a Deusa tinha planos maiores para mim. Ela sempre teve.

Não consigo afastar a lembrança sombria do cântico que as feiticeiras entoavam enquanto eu sangrava; não há música agora, mas o brilho nos olhos de minhas primas é o mesmo daquela noite. É a sede de sangue da própria Deusa, refletida nos olhos negros das garotas Amaranth.

-Vamos lá, Evans. Minha vez agora. -Samantha balança sua faca. Eu prendo a respiração. Odeio esse jogo.

-Não podemos parar? -tento escapar. -Hazel já venceu.

Morgana ri, maliciosa.

-Vai logo, seu covarde. -ela me dá um empurrão. Eu olho para a lâmina suja e usada nas mãos desajeitadas de Samantha; ela nunca foi a mais habilidosa dentre as garotas Amaranth. Já vi minhas primas jogando esse jogo com outros garotos. Nem sempre as facas acertam a madeira.

-Vai ficar tudo bem, Evans. -minha irmã retira suas facas da placa de madeira. Diferente de Samantha, ela nunca erra. Não tenho quase nenhum medo de ser alvejado por ela; a coisa é diferente com Samantha.

Atrás de mim, há uma enorme placa de madeira com todos os 12 signos: a Efígie, o Arlequim, o Corvo, a Fogueira, o Caldeirão, o Pugilista, a Víbora, a Carruagem, o Pífaro, o Tribuno, o Espelho e a Caligem. Todos foram esculpidos pelo próprio Sacerdote e nós não deveríamos estar aqui. Essa placa foi criada para rituais de clarividência e não para ser tocada por aprendizes de feiticeira, mas minhas primas não tem medo de punições.

Diferente delas, eu tenho vários motivos para temer minhas 3 tias, ainda que Lucy, a mais assustadora e perigosa das trigêmeas, nunca tenha tido muito interesse por mim. Minhas outras tias, por sua vez, sempre me causaram sua quota de terror. Raven e Matilda são feiticeiras terríveis. As 3 nasceram sob o signo do Corvo, um presságio excelente que as prometia um futuro de grandes realizações. Por causa disso, desde pequenas as 3 garotas foram criadas como princesas destinadas ao triunfo, com o sonho de um dia se tornarem rainhas.

Nenhuma das 3, porém, chegaria a se tornar rainha. Não havia rainha alguma em Umbra há 900 anos e isso não mudaria enquanto todos os clãs não fossem unificados sob uma só flâmula.

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Nossa mãe, bem mais nova que as trigêmeas, faleceu no parto: quando minha irmã e eu viemos ao mundo, ela já estava morta. Hazel e eu fomos criados pelas minhas tias, mas especialmente por Matilda, mãe de Morgana e Sabrina. E embora ela sempre tenha tratado Hazel muito bem, nunca deixou de me ver como o que sou: a efígie de Umbra, uma ferramenta a ser espetada, cortada e queimada para aumentar os poderes da minha irmã; um sacrifício em potencial.

Sem ter como fugir, eu escolho uma posição. Dezenas de garotas já usaram o arremesso de facas como adivinhação. A placa é posta em movimento e os 12 signos se põe a dançar; se a faca não me acertar, a Deusa lhe presenteará com um fragmento da teia do destino. Se a faca me acertar, a Deusa demandará um sacrifício, ou algo terrível pode acontecer.

Minha prima Samantha me dá as costas e joga as runas. Os pequenos ossinhos rolam pelo chão, revelando a ela partes do futuro. Samantha sorri com o resultado. Morgana revira os olhos para sua irmã menor. Segundo ela, somente uma covarde usaria as runas antes das facas.

-As runas dizem que vou acertar. Que bom pra você, não é, Evans? -ainda de costas, ela se prepara para jogar a faca.

Eu arregalo os olhos. De costas? Isso não fazia parte do jogo.

-Você não vai acertar se jogar assim. -minha irmã Hazel vem em meu socorro.

-Eu perguntei às runas, Zel. Elas me disseram para jogar de costas. Só estou obedecendo à vontade da Deusa. -ela diz, mas minha irmã sabe que ela está mentindo. As respostas das runas são sempre vagas: até feiticeiras adultas têm dificuldade em interpretá-las. Hazel, porém, não a impede.

Morgana me olha com certo divertimento e cruza os braços.

-Vamos lá, Sam. -ela está ansiosa para ver sangue.

-Cale a boca. -Samantha joga a primeira faca.

Meu coração quase para. A faca atinge a madeira a centímetros do meu rosto.

-Acertei! -brada ela, verdadeiramente surpresa. -Eu acertei!

Morgana parece desapontada.

-Acertou onde?

-Na Fogueira. -Samantha lambe os lábios. -Isso vale mais uma tentativa.

A Fogueira é o signo do dinamismo; significa ação, destruição e guerra. Também significa devoção: a destruição e o sacrifício são formas de devoção. Eu odiei esse resultado, mas não posso fazer nada, portanto encaro as garotas com um olhar suplicante. Para minha surpresa, Morgana resolve interferir.

-Minha vez. -ela empurra sua irmã menor.

-Ainda não terminei! -Samantha a empurra de volta. Morgana dá a impressão de que vai reagir, mas recua enquanto sua irmã pega mais um par de facas.

-Certo, vá lá então. Você vai errar mesmo.

-Vamos lá, Evans, me dê sorte! -ela joga a segunda faca. Eu fecho os olhos. Ela atinge a madeira, na altura do meu peito. -Estou arrasando hoje! -Samantha celebra com um rebolado. -Fogueira mais uma vez! Isso pede um terceiro arremesso! Vamos lá, Evans, vamos mostrar para elas que somos a melhor dupla!

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A faca rodopia e se crava num ângulo torto entre minhas pernas, perto demais das minhas partes baixas. Três arremessos perfeitos é um recorde para Samantha. Ela dá um pulo de alegria quando vê que acertou o alvo de novo. Fogueira pela terceira vez; isso já passou do ponto de coincidência.

-Evans, você é ótimo nisso! -ela me elogia, pegando a quarta faca. -Se eu acertar de novo, você vai ganhar a massagem especial da Sam. -ela passa a língua ao redor dos lábios. -Vamos lá. -ela pede a si mesma.

Nesse instante, tenho um mal pressentimento. É algo que nunca senti antes. Não é o simples medo que me guiou até hoje: é uma certeza cabal de que aquela faca vai me matar. Posso imaginá-la perfeitamente, rodando em minha direção. O pavor me preenche e tento parar Samantha.

-Espere, Sam! -eu grito. Ela ri de mim, sem se importar. Assim como sua irmã mais velha, Samantha não me leva a sério.

Não tenho o direito de interferir no treinamento de uma aprendiz de feiticeira, ainda que minha vida corra risco, mas novamente não consigo manter a compostura na presença da Deusa da Morte.

No último instante, saio da frente da placa. A faca gira, a ponta mais pesada que o cabo, e se crava no meu ombro direito, onde minha cabeça estava há instantes. Morgana deixa escapar um risinho. Hazel arregala os olhos, sem dizer nada, e Samantha dá um grunhido irritada por ter errado o alvo.

-Você se mexeu, idiota! -ela grita para mim. Eu olho para a faca e posso senti-la tocando o osso. Tenho alguma tolerância a dor, mas quando vejo meu sangue empapando a blusa, vou direto para o chão.

Morgana se abaixa com um frasco nas mãos. Penso que ela vai me ajudar, mas vejo que não. Ela tinha previsto esse resultado: de alguma maneira, Morgana sabia que eu sangraria hoje.

E ela queria o meu sangue. Um ingrediente poderoso, ainda mais de um Amaranth e concedido pela própria Deusa, que escolheu deixar aquela lâmina me atingir, quando tantas outras passaram sem me ferir.

-Um Amaranth não pode ter medo da morte. -me disse minha tia Lucy uma vez. -Homem ou mulher.

Infelizmente, não consigo seguir o seu conselho. Gostaria muito que conseguisse. Minha tia Lucy é a feiticeira mais letal de todo o Clã: já matou centenas de khans e aurianos e carrega seus ossos como amuletos; seus inimigos estremecem somente ao ouvir o tilintar dos ossos balançando em seu pescoço. Ela é uma mulher que inspira medo: uma feiticeira de verdade. Algo que eu nunca serei.

Minha mente fica leve e a dor vai embora, junto de todo o resto. A última coisa que escuto antes de desmaiar é a risada de minhas primas e a voz irritada de Hazel, falando alguma coisa sobre desperdício.

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