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O Manto de Shaka

 

Aquele deveria ter sido um dia como qualquer outro. Eu jamais imaginaria a sequência de eventos que mudaria meu futuro para sempre; não só o meu, mas também o de minha família e de todos os khans espalhados pelas Cordilheiras de Shaka, a maior cadeia de montanhas do mundo.

Aconteceu dois invernos atrás, quando eu ainda tinha 14 anos e não sabia nada sobre meu destino. Eu voltava para casa após uma caçada de um dia e meio. Estávamos nos últimos dias de outono, quando os ventos uivantes nos fustigavam com mais força, tornando as caminhadas pelos cumes íngremes desafios perigosos, tanto para os humanos quanto para os animais.

Naquela época do ano ainda encontrávamos animais vagando pelas terras altas, montanhas rochosas e alguns mais ousados até mesmo pelos cumes nevados, onde há pouca vegetação, mas a caça já era escassa. Além disso, o inverno batia à nossa porta, sempre me apressando, lembrando-me de que se eu não tivesse boas caçadas em minhas próximas incursões nas montanhas, minha família passaria por meses difíceis, presa dentro de casa por causa da neve, castigados com a frio e a fome, como já acontecera tantas vezes antes.

Eu precisava de carne. Nós tínhamos um pequeno rebanho de cabras monteses que nos forneciam leite e lã, mas mesmo o mais forte khan não sobrevive sem carne por muito tempo. Não sei como são os outros países, mas acho difícil de acreditar que exista clima mais duro do que o inverno khan. Shaka tem uma beleza sem igual: em cada estação do ano a vegetação é diferente, trazendo desde o vermelho e azul das flores na primavera ao profundo branco do inverno, em contraste com as rochas negras da cordilheira. O preço de viver num lugar tão lindo é suportar a aspereza da natureza. Meu avô Jinpa me disse isso quando ainda estava vivo; ele morreu 4 anos atrás. Nós khans não possuímos poderes mágicos como Allure nem fazemos rituais diabólicos como Umbra, mas somos um povo resistente, o mais resistente de todos, e nada pode nos derrubar.

Era isso que eu repetia dentro da minha cabeça, enquanto reunia coragem para dar um passo à frente e encarar aquela criatura majestosa e terrível, sabendo muito bem que aquele passo podia ser meu último.

Com horror e deslumbre, contemplei o leopardo das neves.

Não era comum dar de cara com um desses por ali. Essas feras eram furtivas e viviam nos cantos mais isolados das cordilheiras; encontros assim eram incrivelmente raros. Aquele leopardo estar tão perto de casa só podia significar uma coisa: ele estava faminto. Senti meus pelos se eriçando ao pensar nisso. Ele era como eu. Um caçador atrás de carne. Era uma das situações mais perigosas que eu já havia me metido, mas ao menos podíamos compreender um ao outro.

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Assim que deixei para trás meu esconderijo de rochas e galhos cinzentos, os instintos do predador lhe revelaram minha posição antes que seus olhos me encontrassem. Talvez tenha ouvido meus passos, talvez sentido meu cheiro. Com um movimento gracioso, o esguio leopardo das neves virou-se em minha direção, suas patas ágeis pisando acolchoadas sobre a trilha rochosa.

Meu coração estava na boca: já vi um leopardo das neves estraçalhar um iaque dez vezes mais pesado do que ele. Se me pegasse, acabaria comigo num piscar de olhos. Muitos khan já perderam suas vidas por falta de cautela e, admito, eu estava correndo muitos riscos ao me revelar para ele. Lembro-me do vapor que aquele belíssimo leopardo exalava ao respirar e também do meu coração disparado, bombeando sangue e esquentando meu corpo gelado.

Era a primeira vez que encarava um predador tão de perto. Eu já havia visto um leopardo das neves uma única vez antes, mas agora era diferente: estávamos caçando um ao outro, prontos para matar e morrer. A excitação por estar ali, diante da morte, me agitava quase tanto quanto o medo.

Nos olhamos por um único segundo, que durou uma pequena eternidade. O feitiço se quebrou quando contrariei meus instintos e dei as costas à fera. Sabia que ele viria atrás de mim. Comecei a correr, sabendo que um único passo em falso me jogaria sob suas garras, ou então montanha abaixo. Não queria pensar qual destino era pior. Na verdade, não queria pensar em nada. Sabia o que tinha que fazer: estava tudo muito claro dentro da minha cabeça.

Bastava continuar com o plano.

Com passos cambaleantes, me joguei pela trilha enquanto ele encurtava a distância, atraindo-o até minhas armadilhas. Havia preparado mais de uma, por precaução: outra valiosa lição do meu avô. Um caçador era mais parecido com um estrategista do que com um soldado. Algumas poucas armadilhas bem colocadas matavam muito mais do que lanças ou flechas.

Atravessei o campo de armadilhas com cuidado redobrado. Não tinha pés tão leves quanto os do leopardo, mas sabia muito bem o que estava fazendo. Estava usando minha cabeça, enquanto o leopardo tinha apenas seus instintos para guiá-lo. Além disso, eu havia ensaiado essa mesma dança desajeitada naquele dia mais cedo, quando encontrara os rastros do leopardo na neve matinal. Eu tivera bastante tempo para me preparar para aquele momento. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, ele viria até mim. Portanto, dera o meu melhor. Era chegada a hora de finalmente inverter os papéis: ele deixaria de ser predador para tornar-se presa.

Virei-me com um sorriso vitorioso, mas agi cedo demais. Ainda me faltava um pouco para sair do campo cercado de armadilhas, enquanto o leopardo já estava sobre mim, pronto para me pegar. Chegaria até meu pescoço com um único salto. Naquele momento, meu coração ficou tão frio quanto a neve debaixo dos meus pés. Lembrei-me de meu avô e do meu pai, ambos mortos.

O medo me derrubou antes que o leopardo o fizesse. Caí de costas enquanto ele se preparava para saltar e minha garganta ficou seca com o ar gelado. Então ouvi o som de algo rasgando o ar.

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O leopardo foi surpreendido em pleno salto, quando Ren, meu falcão peregrino, caiu sobre ele com um rasante imponente. Suas asas farfalhantes roubaram a visão do leopardo, fazendo-o vacilar e pisar em falso, jogando seu peso sobre a frágil estrutura de neve e galhos secos debaixo dele. Ren, o falcão, subiu silencioso; mesmo contra um leopardo das neves, ele não hesitou em nenhum instante. Ren é o maior caçador que já conheci. Foi meu avô quem o adestrou.

O leopardo, por outro lado, soltou um rugido de dor ao encontrar as estacas afiadas que eu havia deixado preparadas no buraco. Voltei a sorrir, ciente de que havia escapado da morte por muito pouco, e chamei Ren de volta. Obediente, ele pousou em meu ombro e o recompensei com um pedaço de carne. Ele salvara minha vida. Acariciei suas penas macias enquanto ele devorava seu petisco.

Não demorei muito para preparar meu arco e abater o animal que agonizava lá embaixo. Precisei de três flechas para silenciá-lo. Sua carne não era especialmente boa, mas serviria para matar a fome. Além disso, sua pelagem daria um belo manto para me proteger no inverno, além de deixar meus irmãos menores morrendo de inveja. Com o corpo suado e a respiração ofegante, eu não tivera tempo de me dar o devido crédito. Havia acabado de matar um leopardo das neves! Comecei a rir alto, com um sorriso bobo desenhado em meu rosto.

Um leopardo das neves. Meus pelos estavam arrepiados. Poucas pessoas tinham sequer visto esse animal, mas caçado e matado um? Além de mim, o único que eu conhecia que já havia feito isso era meu pai.

Permaneci alguns segundos ali em cima, contemplando meu trabalho, mas o frio me impedia de ficar lá por muito tempo. Logo desci buraco adentro, saquei minha navalha e destrinchei a carcaça, tirando primeiro a pele e limpando o sangue com neve, para depois fatiar a carne e embalar os pedaços. Peguei também as garras e presas para fazer um colar. Minhas irmãzinhas iriam adorar. Sorridente, toquei em meu próprio colar que carregava no pescoço. Mas ao invés de garras de leopardo, esse colar tinha os dentes das bruxas que meu pai matou.

Foi como meu avô costumava dizer: nós da família Khabitchi somos o maior dos predadores. Se usarmos nossa cabeça, somos mais perigosos do que qualquer animal selvagem ou demônio umbriano.

Cheguei em casa carregando os restos do leopardo e meia dúzia de lebres já duras e frias, que tinha caçado no dia anterior com a ajuda de Ren, mas sentia como se estivesse carregando um iaque adulto nas costas. A viagem de volta foi dura. O frio torna qualquer tarefa exaustiva e não era comum eu voltar para casa com tanta carne. Essa fora minha melhor caçada desde a morte de meu avô. Estava com o peito estufado de orgulho enquanto descia pela estradinha.

Nossa casa ficava numa pequena planície na metade oriental de Shaka, num ponto elevado da encosta Norte, bem localizada entre dois fortes, protegida dos invasores umbrianos. A guerra nunca chegou até lá e nos invernos costumamos ficar isolados das outras vilas, devido ao estado precário das estradas que levam até nossa pequena planície e das tempestades de neve.

Moravam apenas duas famílias nessa região: nós, os Khabitchi, e os Usun, nossos queridos vizinhos. Eu sempre me dei muito bem com os 3 filhos dos Usun: a filha mais nova, Khulan, era minha melhor amiga. E várias vezes já cacei com os dois filhos mais velhos, Gelek e Wotan. Dessa vez, porém, eu não estava na companhia deles. O único que seguia comigo era meu parceiro Ren, o falcão. Ele vinha pousado no meu ombro esquerdo, com seu olhar afiado e garboso.

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Notei algo fora do comum quando me aproximei de casa, descendo a trilha que atravessava a planície e me levava de volta ao lar. Nossos animais estavam inquietos; o rebanho disperso e tenso. Vi um grupo de 4 pôneis estacionados há alguns metros da frente da casa. Tinham boas celas e mantos de peles para protegê-los do frio, o que indicava que pertenciam a alguém importante. Sentindo a tensão se espalhar pelo meu corpo, soltei Ren e o mandei voar, enquanto me esgueirava na direção da casa. Ouvi pessoas falando do lado de dentro.

Puxei a faca da minha bota e aproximei o ouvido da porta. Desde que meu pai se foi, não tínhamos mais guerreiros na família. Meu irmão Yul, o filho mais velho depois de mim, desde aquela época já estava ansioso para seguir os passos de meu pai. Mas apesar de andar para lá e para cá ostentando seu velho uniforme e brandindo suas armas, Yul ainda não era um guerreiro.

Devagar, espiei através de uma das janelas. Na hora vi que não foi uma ideia especialmente brilhante; minha irmãzinha menor, Linlin, me reconheceu e abriu um enorme sorriso, entregando minha posição. Se fossem inimigos ali, as coisas poderiam ter acabado muito mal para mim. Felizmente não foi isso que aconteceu. Linlin avisou os outros e todos me lançaram um olhar cheio de alegria, o que me trouxe apenas confusão. Minha irmã do meio, Silun, foi até a porta e a abriu sem pensar duas vezes, correndo até mim e se jogando num abraço.

-Kiara! -disse ela, me apertando com seus bracinhos frágeis. -Os arautos da Yamuna estão aqui! Eles vieram te ver!

Na hora tive um sobressalto. Naquele instante soube que algo importante estava para acontecer. O clã Khabitchi, apesar de orgulhoso, era pequeno e sem importância no cenário de Shaka, nosso país, que era governado por nossa grande matriarca, Choden Kunlun, Yamuna de Shaka. Eu sabia que meu pai, Rigsang Khabitchi, havia conquistado alguma fama como Yere-Jun, título honorário de comandante concedido a heróis de guerra, mas não era o suficiente para trazer até nós os arautos da Yamuna, ainda mais tanto tempo depois de sua morte.

Ainda confusa, deixei a caça do lado de fora e me aproximei da porta, curiosa para saber o que a mulher mais importante de Shaka queria com uma garota filha de um clã pequeno nos confins das montanhas.

Quando meu pai morreu na guerra contra Umbra, minha família ficou sem ninguém para nos sustentar. Meu avô fez o que pôde, mas ele já era idoso e sabia que o trabalho pesado acabaria com sua saúde, por isso me ensinou a lutar e a caçar, desde meus 8 anos de idade. Quando eu fiz 12 ele faleceu e, desde então, eu sustento minha família, ainda que seja uma garota. Meu irmão Yul morre de ciúmes por isso, mas eu o amo ainda assim: sei que um dia ele vai crescer e se tornar um grande guerreiro como o nosso pai foi, mas até lá, eu sou o homem da casa.

Além de Yul, que tem 13, e minhas irmãs Silun e Linlin, com 12 e 9 anos, eu tenho mais dois irmãos, os gêmeos Khaishan e Khairu, que acabaram de fazer 10. Somos 6 filhos e vivemos com mamãe e vovó, que são muito responsáveis e cuidam de todos nós, mas não podem abandonar seus afazeres para buscar comida nas montanhas. Sou jovem ainda, mas sou uma ótima caçadora: aprendi com o melhor. Sou ótima com armadilhas e tenho a companhia de Ren, o maior de todos os falcões e um especialista em pegar lebres, portanto não me sinto sozinha.

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Quando entrei em casa, estavam todos lá esperando por mim, o que não era incomum, já que eu trazia a carne que nos alimentaria pelo resto da semana. Todos os olhares pousaram sobre mim, felizes e ansiosos, mas também assustados e cheios de perguntas. Desconfortável, eu examinei os estranhos. Eram todos homens e vestiam roupas de viagem. Quando cheguei, me examinaram da cabeça aos pés, com bastante desconfiança e até mesmo desdém.

-Você é Kiara, filha mais velha dos Khabitchi? -perguntou um homem alto e barbudo. Ele tinha tantos pelos na cara que era difícil ver sua expressão, mas eu podia ver que ele não me dava muito valor.

-Sou eu. -respondi sem pestanejar.

-Quantos anos você tem? -ele me examinava dos pés à cabeça. Seus olhos se fixaram em meus cabelos, longos e pretos: eu sempre os prendia em uma trança quando saía para caçar.

-Catorze. -murmurei.

Ele não pareceu satisfeito. Eu nunca fui grande e ameaçadora, nem para os padrões de Shaka, mas como meu avô costumava dizer, ser pequena não fazia de mim menor do que ninguém. Eu ainda tinha a pele clara, cabelos escuros e olhos puxados, como qualquer outro khan. Ainda assim, fiquei quieta; aquele homem parecia importante e eu não queria deixá-lo irritado.

Quando o homem se levantou, me surpreendi com o seu tamanho. Era o maior khan que eu já havia visto. Carregava na cintura uma espada curva cravejada de jóias, com um símbolo estranho, mas muito bonito. Na hora, eu não o reconheci: não sabia nada sobre a as famílias e insígnias de Shaka, mas aquele era o símbolo dos Kunlun, ninguém menos do que a família real khan.

-Estou aqui por ordens da Yamuna. -ele me esclareceu. Eu podia sentir uma estranha tensão se espalhando; o homem tentava me intimidar. Senti um arrepio, mas ergui a cabeça e o olhei nos olhos:

-O que a Yamuna quer comigo?

Ele não gostou do meu tom de voz, mas não recuei. Na ausência de meu pai e meu avô, eu era o escudo dos Khabitchi e precisava mostrar firmeza, principalmente diante dos representantes da pessoa mais importante de Shaka. Ele passou alguns segundos me encarando, examinando as roupas de couro e peles que eu vestia, surradas e cobertas de neve, certamente questionando minha postura por causa do meu tamanho, idade e pelo fato de eu ser uma garota.

-Conheci seu pai. -ele disse enfim, suavizando sua expressão. -Rigsang, “O Demônio de Xanmei”. Foi um dos maiores guerreiros de Shaka. -ele me estendeu sua mão direita num sinal de respeito. Não consegui esconder a surpresa, mas estendi a minha em resposta e seguramos o antebraço um do outro, num cumprimento dos Asugan, guerreiros do exército da Yamuna.

-Papai derrotou uma tropa imperial de Allure sozinho, defendendo a encosta Xanmei. -gabou-se meu irmão Yul, recitando aquilo que mamãe nos contava sobre nosso pai. -Além disso, ele protegeu o acampamento Gerdu durante um outono inteiro, lutando contra as bruxas de Inferos.

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Gerdu era o acampamento mais perto de nossa casa, a cerca de 3 dias de caminhada, e um dos postos militares mais importantes de Shaka. Lá ficava o centro de comando que distribuía ordens para outros três fortes espalhados na fronteira Norte, na divisa com os pântanos de Umbra. Além disso, lá viviam quase 2.000 pessoas, entre aldeões e os Asugan. Ele ficava perigosamente próximo da pior cidade Umbra, a terrível Inferos, lar do clã Deimon. As bruxas mais perversas de Umbra viviam lá. Todos em Shaka temiam Inferos, mas não meu pai. Como Yere-Jun no comando de 250 Asugan, ele liderou a defesa de Gerdu e expulsou as bruxas de lá, esgotando seus recursos antes da chegada do inverno. Além de guerreiro, meu pai também era um ótimo estrategista, tão esperto quanto meu avô.

O homem sorriu com as palavras do meu irmão Yul, mas sua expressão endureceu quando ele voltou a pousar sobre mim aqueles olhos pesados.

-Meu nome é Kotya, do clã Qatan. Fui enviado aqui pelo Vice-Rei.

Não reconheci o nome, mas eu não precisava disso para saber que ele era um homem importante. Kotya era um Beredai-Jun, como fui descobrir depois: um general de Shaka, o mais alto posto de oficial em todo o Yeredai, o exército da Yamuna: ele comandava mais de 1.000 homens.

Kotya buscou por algo no meio das peles de iaque que vestia. Novamente, me surpreendi com o que vi. Era a mesma insígnia de sua espada. Colocando a mão em meu ombro, ele me explicou:

-Essa é insígnia dos Kunlun, esculpida em ossos humanos. É a marca da família real de Shaka, o símbolo de um sucessor ao trono. A própria Yamuna tem um desses. É um artefato muito precioso.

Se esse homem carregava essa insígnia, significava que a velha Choden o tinha escolhido como herdeiro?

-A Yamuna está bem? -perguntei, receosa. -Você… Você é o novo Yamun? -me gelei toda ao pensar isso. Será que estava diante do novo líder de Shaka? Eu nunca fui de abaixar a cabeça, mas a história é diferente quando você está diante de um rei. A Yamuna Choden governara pelos últimos 33 anos; imaginar que seu reinado chegara ao fim era algo totalmente estranho para mim.

Mais estranho ainda, porém, foi quando Kotya Qatan ajoelhou-se diante de mim, me oferecendo aquela insígnia tão preciosa, diante dos olhos de toda a minha família. Seus três companheiros também ficaram de joelhos e não demorou até que minha avó e minha mãe fizessem o mesmo, seguidas pelos meus irmãos e irmãs. Fiquei paralisada, olhando para frente sem saber o que fazer.

-Essa insígnia não é minha. Ela pertence a Kiara Kunlun, nova campeã de Shaka e herdeira da Yamuna, apontada pelo Vice-Rei e escolhida pelas estrelas. Á partir de hoje, a família Khabitchi será acolhida na família Kunlun, recebendo sua proteção e obrigações. E você se tornará a próxima campeã de nosso povo, sendo recebida no seio do clã Kunlun. Tenho ordens de levá-la imediatamente até o Forte Hakomon, onde receberá treinamento pela própria Choden, para prepará-la para a próxima Ruína Dourada, quando lutará em nome de toda Shaka.

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Lembro-me de cair de joelhos e das lágrimas que derramei quando ouvi essa notícia pela primeira vez. Lembro-me do orgulho que senti, ao ser escolhida pela Yamuna para representar nosso povo, para lutar por ele. Lembro-me da felicidade que senti ao saber que minha família seria acolhida pelo clã mais poderoso de Shaka; ao saber que meus irmãos e irmãs nunca mais passariam fome.

Mas, acima de tudo, lembro-me do medo que senti quando soube que deixaria para trás tudo aquilo que amava, todo meu mundo, para me tornar um instrumento do destino. Uma arma nas mãos da Yamuna, a guardiã de nossas cordilheiras, o manto que protegeria Shaka desse inverno terrível que cairia sobre o mundo.

Chorei porque sabia que não poderia escapar daquilo; era maior do que eu, maior do que Kiara ou do que os Khabitchi. Não queria nada disso. Tudo que queria era o conforto de minha casa, nas montanhas, junto das pessoas que amava. Era a liberdade de sair para caçar nos picos nevados, debaixo do céu infinito. Eu não queria nada do que a Yamuna me oferecia, mas soube naquele mesmo instante que jamais diria não para ela. Não queria nada daquilo, mas tive a certeza de que mataria e morreria em nome do meu povo, se isso fosse exigido de mim. Chorei por isso. E também porque sabia que aquela seria a última vez que veria minha família.

-E então? -perguntou Kotya, com estranha ternura em sua voz.

-É uma honra servir Shaka e a Yamuna. -respondi, com a voz trêmula, as lágrimas ainda manchando meu rosto. -Leve-me até o Forte Hakomon e prometo que trarei a vitória para Shaka. Ou morrerei tentando.

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