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O Relógio de Crisália

 

Relógios são coisas curiosas: pequenas engrenagens conectadas de maneira engenhosa, uma empurrando a outra, todas juntas a se mover num eterno ciclo, contando o tempo num ritmo lento e estável.

Previsíveis. Confiáveis.

Nesse ponto, sempre achei os humanos muito parecidos com os relógios: cada um de nós é uma pequena máquina funcional que segue em uma só direção, do momento em que nascemos até o nosso último. Como os relógios, nossos ponteiros também vão se mover, as horas e minutos vão passar, e um dia, vamos parar de funcionar. Previsível. Confiável. E inevitável.

Como médico e acadêmico, minha batalha sempre foi contra a morte, e várias vezes eu venci: salvei milhares de vidas na guerra civil. Amputei incontáveis pés, mãos, dedos e narizes por causa da hipotermia, mas salvei suas vidas. O frio penetrava a todos como uma doença: não há pior trabalho do que ser um médico numa trincheira, com a exceção, talvez, de ser um soldado de infantaria.

Lá, eu via a morte todos os dias, mas a guerra me mantinha ocupado: não havia tempo para sentir tristeza. Era matar ou ser morto, ou então, muito pior do que as duas coisas, ficar meses enfiado num buraco com uma centena de homens passando frio, seus companheiros amanhecendo mortos no leito ao seu lado, enquanto você se perguntava quando seria sua vez.

A guerra civil foi um período sombrio. Os habitantes das ruínas Suvion declararam independência do resto de Crisália, alegando serem descendentes do povo de Diemera, que construiu a cidade muito tempo atrás. Eles se esqueceram de que não havia um diemér em Crisália desde que o continente de Diemera afundou, há 4.500 anos. Qualquer idiota que frequentasse a Universidade Progressista de Greenwich saberia disso; ainda assim, eles escolheram lutar por uma causa perdida, arrastando consigo dezenas de milhares. Nosso presidente, Maxwell Chariot, comprou a briga, usando a guerra para se promover e garantir o poderio republicano: a vitória o colocou à frente de todos os outros membros do parlamento, permitindo sua reeleição.

Eu, por outro lado, mal sobrevivi à guerra. Como um estudioso recém saído da universidade, eu nunca fui um soldado, mas meu país me obrigou a servi-lo, mergulhando de cabeça naquele inferno gelado por 3 longos anos. Eu desejei morrer todos os dias; a guerra não era para mim. Ainda assim, por um acaso do destino, voltei vivo. Ferido e sequelado, mas vivo.

E assim como os ponteiros de um velho relógio, meu tempo também acabou. Minhas engrenagens pararam de rodar no dia em que voltei para casa e não encontrei minha amada Leah esperando por mim.

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Desesperado, eu revirei a cidade toda atrás dela. Eu não tinha notícias de Leah desde que partira para a guerra, um jovem tolo de 23 anos. Ela estava grávida de nosso primeiro filho, uma criança que nunca chegou a nascer. Havíamos nos casado há apenas 3 anos e eu sonhava com ela todas as noites em que que adormeci encolhido naquelas trincheiras de gelo.

Mal sabia eu que esse sonho jamais se realizaria.

Fui encontrá-la só no dia seguinte, internada no Hospital Militar Crisalino, sob o nome ‘Leah Reed’, ainda que minha esposa tivesse mantido seu nome de solteira. Aqueles idiotas nunca me deixariam esquecer de minhas origens e Leah, que não tinha culpa alguma, pagaria por isso também.

Meu nome é Noah Reed: descendente da antiga monarquia de Crisália, derrubada e guilhotinada 50 anos atrás. Desde que a República foi instituída, houve uma caça aos membros da realeza e meus antepassados foram todos guilhotinados. Da minha família, apenas meus avós sobreviveram, além da minha tia-avó Basque, que eu sempre odiei por ser antiquada demais.

Quando a guerra civil terminou, porém, 50 anos depois da declaração da república, eu e minha tia-avó éramos os últimos Reed vivos. Mas desde a época dos meus pais, ninguém mais se dava ao trabalho de nos perseguir: como quaisquer outros, nós éramos cidadãos republicanos.

Mas isso não mudava em nada a maneira que o exército olhava para mim. E para a minha esposa, Leah Quinn, também não.

Quando eu a encontrei naquele precário leito de hospital, de cama há quase 3 anos e com uma pilha de cartas minhas fechadas na cabeceira ao seu lado, tive vontade de matar cada soldado crisalino com minhas próprias mãos. Leah perdera o bebê no mês seguinte à minha partida e, pouco depois, caíra vítima de uma epidemia que assolara toda a cidade de Endeavor, capital de Crisália.

A doença, porém, era tratável, o que somente aumentou o meu ódio: eles poderiam ter cuidado dela. Ela poderia ter sido salva. Nós dois éramos cidadãos de Crisália; eu servi aquele país desprezível por 3 anos numa guerra que não era minha. Leah tinha direito a um tratamento digno, mas como não havia ninguém para lutar por ela, aqueles bastardos a deixaram definhar.

Quando cheguei, a situação era crítica: a doença espalhou-se para o seu cérebro e todos os outros órgãos estavam parando de funcionar. Ela não acordava há 3 dias e, mesmo antes disso, mal abria os olhos, conseguindo engolir água e comida apenas com muita ajuda. Estava magra e desidratada e não sobreviveria muito mais: mas o que isso importava aos militares?

Ela era apenas a esposa de Noah Reed.

Naquele dia eu deixei o exército para sempre, sem me importar que me taxassem de desertor. A guerra já havia acabado e minhas obrigações também. Mas assim como em meus dias de campanha, a morte acenou para mim, tentadora. Leah, porém, ainda não tinha morrido, por mais que tudo conspirasse contra ela. De cama há 2 anos, o amor da minha vida continuava a lutar, e enquanto ela lutasse, eu também não iria desistir. Enquanto houvesse vida, havia esperança.

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Pelos próximos 4 anos eu mantive minha esposa viva, lutando contra o curso natural das coisas, contra o giro dos ponteiros do relógio. Lutei contra a morte com todas as armas que arranjei. Gastei uma fortuna em tratamentos de ponta, comprando aparelhos capazes de maravilhas médicas e remédios feitos com ervas umbrianas raríssimas, importadas do outro lado do mundo.

Tentei todos os tipos de tratamentos para trazê-la de volta e, quando cada um deles falhou, comecei a desenvolver os meus próprios: estudei cérebros até não aguentar mais, comprei meus próprios aparelhos de farmacologia, aprendi até mesmo a projetar e construir máquinas elaboradas, usando a tecnologia dos barcos à vapor combinada às enigmáticas engrenagens dos relógios. Contrabandeei substâncias proibidas das Docas da Marinha Republicana e revirei cada canto empoeirado do Distrito Industrial Manivela atrás de peças para minhas máquinas.

Esgotei metade da fortuna que herdei de meus pais comprando todo tipo de livro que pudesse me guiar, enquanto outra metade foi embora para manter Leah viva: para filtrar seu sangue envenenado, para alimentar seu corpo enfermo, para manter seus pulmões respirando e seu coração batendo.

Eu fiz isso por 4 anos; por 4 anos lutei contra a morte sozinho, ao lado daquela cama de lençóis brancos onde repousava o amor da minha vida. 4 anos presos num pesadelo interminável.

Até o dia em que o coração de Leah parou de bater.

Naquela noite, minha vida perdeu o sentido. Decidi que não suportaria passar por aquilo. Colocaria um fim em tudo, usando a velha guilhotina que tínhamos no porão: a mesma que decapitara meus antepassados e que, por algum capricho sombrio, minha tia-avó decidira comprar de contrabandistas no mercado negro e guardar nas profundezas da velha mansão onde morava antes de se mudar para o campo.

Eu preparei tudo: estava pronto para morrer. Encaixei meu queixo no suporte côncavo e cortei a corda que segurava a imensa lâmina enferrujada, mas ao invés de cair, aquele pedaço de metal escuro ficou preso nas hastes laterais, o suficiente para eu me aterrorizar e recuar.

Instantes depois de puxar a cabeça, a lâmina despencou e destruiu a velha base de madeira apodrecida com um estrondo. A guilhotina se desfez diante de meus olhos, sem me dar uma segunda chance.

Não havia mais motivos para viver, mas eu não tinha coragem de me matar. Por um instante a tristeza toda desapareceu e me senti vazio: se continuasse a viver, era assim que me sentiria pelo resto da vida. Meu amor havia ido embora, levando consigo o pouco que a guerra não conseguira tirar de mim.

A escuridão do porão me envolveu, trazendo com ela uma imensa tontura. Eu recuei trôpego, trombando com uma estante e derrubando no chão pilhas de livros e outras coisas velhas da minha tia-avó. Caí de costas e, quando voltei a me erguer, estava segurando um antigo caderno, com folhas amarelas de um material estranho, tão antigas que estavam se desfazendo com o meu toque.

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Não sei porquê eu olhei aquele caderno: talvez fosse a sombra do acadêmico dentro de mim, aficcionado por estudos e conhecimentos, ou talvez meu corpo estivesse agindo sozinho, numa tentativa desesperada de autopreservação da minha identidade, já que meu cérebro, derrotado, estava aos poucos se desligando da realidade, sem vontade de viver num mundo sem Leah.

Jamais imaginei que aquele caderno me traria respostas, mas foi exatamente isso que ele fez: por tanto tempo lutei pela vida, quando a única solução para o problema estava na própria morte. E só descobri isso quando li aquelas páginas velhas, me tornando eu mesmo o Relógio de Crisália, capaz de girar os ponteiros ao contrário e inverter a ordem natural das coisas.

Por Leah, eu faria o tempo correr para trás.

Ergui meus olhos cansados para as letras semi apagadas.

Posteriormente, quando restaurei o caderno, consegui distinguir as letras apagadas que diziam “Diário de Elizabeth Guinevere, Campeã de Crisália. Vencedora da Ruína Dourada e Responsável pela Destruição de Diemera”, mas naquele instante, as únicas palavras que me interessavam estavam totalmente legíveis.

“Crisália. Outono. Invoquei meu poder pela primeira vez. Obtive reações sutis de minhas cobaias: pequenos espasmos. Bastante impressionante para criaturas que deveriam estar mortas”.

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