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O Verso de Oberon

 

Eu conheço o som mais lindo do mundo, e ele não vem de instrumentos musicais nem das vozes dos trovadores. Na calmaria noturna das planícies, o vento sopra com mais força: arbustos se dobram e copas de grandes árvores dançam em redemoinhos de outono, vermelhos e amarelos. É nessa hora que o som de Oberon preenche o mundo, carregado por quilômetros através do ar.

Quando fecho os olhos e sinto o vento bater em meu rosto, escuto acordes e harmonias invisíveis, cruzando o espaço aberto, cavalgando pelas terras altas, ressoando nos campos de trigo.

Posso imaginar as carruagens do Sacro Império abrindo caminho através das estradas em dias chuvosos, lideradas por cavaleiros galantes em armaduras de prata. As bandeiras dos cruzados tremulam na tempestade, prontas para a guerra; cavalos brancos marcham orgulhosos e lanças e espadas brilham exuberantes. Lá em cima, o Senhor todo poderoso olha por seus filhos: homens imponentes se ajoelham e recebem sua bênção, agraciados com a vitória certa.

Vejo também vilas inteiras em festa, dançando ao redor de fogueiras imensas, decoradas com bandeirinhas e fitas coloridas, comemorando a chegada da colheita. Dois amantes se encontram debaixo das cerejeiras em flor, sussurrando promessas íntimas um para o outro. Há algumas casas dali, uma família de lenhadores se prepara para a ceia, sentando-se ao redor de uma mesa farta com pães e frutas; mãe, pai e filha dão as mãos e agradecem pela comida, iluminada por velas acesas e sorrisos quentes. Risadas preenchem a noite.

Por alguns instantes, não há dor nem tristeza. Temos força e dignidade: há beleza e amor e nenhum desafio é grande demais. É isso que me diz a canção de Oberon, aquela que só eu escuto.

É essa mesma canção que tento trazer ao mundo. Tento moldar o intangível, dando corpo àquilo que não tem forma, dando vida a um pensamento, apresentando ao mundo aquilo que era vivo somente em mim. Assim como a melodia dos ventos, minha música atravessa a noite, moldada pela minha voz e pelas 12 cordas de minha pequena lira. Juntas vibramos com os sons de Oberon.

Quando eu termino, há um interminável período de silêncio.

E então os aplausos.

Os sorrisos da plateia me aquecem: quase trinta pessoas, sentadas sobre a relva, escutam nosso sarau com olhos e ouvidos abertos. Recebemos muitos agradecimentos: desde abraços e palavras sinceras até pedaços de pão, frutas maduras e filetes de carne seca. Alguns poucos enchem meu imenso chapéu de arlequim, cheio de guizos, com alguns cruzados imperiais.

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Ouvir todas aquelas palmas me enche de alegria: me faz esquecer a dureza que enfrentamos todos os dias e enxergar propósito no que fazemos. Várias vezes escapei para as planícies, libertando-me da dureza das pedras e da melancolia das cidades em ruínas, apenas para ouvir a canção do vento: e assim como ela, a gratidão de uma plateia é uma recompensa sem tamanho.

Eu saboreio o ar noturno em minha própria pele. Gosto do frio; me lembra muito de neve recém caída, morangos e fogueiras quentes; cantigas em roda e famílias abraçadas. Minhas emoções correm soltas, pois conheço tudo isso muito bem: trovadores levam os festejos consigo onde quer que vão.

O povo pede mais, batendo palmas em meio às risadas, e eu me arrisco a fazer mais uma performance: dança, malabares e acrobacias. Normalmente, fico apenas com o papel secundário: não sou nem de longe tão habilidosa quanto meu pai. Ele é capaz de capturar a atenção de qualquer plateia, fazendo até mesmo soldados aurianos rirem e dançarem com nossas canções.

Sua voz de tenor, combinada ao seu visual sedutor, causa arrepios tanto nas garotas jovens quanto nas velhas senhoras oberinas. Uma coisa que ele não faz, porém, é cantar com voz de soprano: é aí que eu entro. Também sou uma excelente assistente de palco e minhas acrobacias funcionam para entreter a plateia aquecida. Do canto do palco, meu pai me lança um sorriso encorajador.

Essa é a primeira vez que me apresento sozinha.

Crianças me olham risonhas, já prevendo palhaçadas e trapalhadas, mas seus olhinhos logo se arregalam. É sempre a mesma reação quando chegamos a essa parte do show. Tochas flamejantes cortam o céu, uma depois da outra, manuseadas pelas minhas mãos hesitantes. Já pratiquei isso mil vezes, mas é diferente quando se está num palco com uma plateia.

Começo bem, mas logo a primeira tocha cai. Fico vermelha de vergonha, mas antes que possa estragar tudo, meu pai entra em cena, tocando sua própria lira: uma peça maravilhosa de 24 cordas: ela consegue alcançar até duas oitavas abaixo da minha e sua música preenche o palco. Sua voz grave acompanha os acordes, dividindo a atenção, e eu não erro mais.

Quando a noite termina, estamos exaustos, mas nunca me senti tão bem. O novo porta-voz da cidade, o senhor Schiller, nos presenteia com uma enorme garrafa de vinho, um Zurich Roset, safra de 15 anos. Meu pai arregala os olhos: esse não é um vinho qualquer. O senhor Schiller o guardava nas adegas subterrâneas, aqui mesmo na cidade, para que não caísse nas mãos dos coletores de impostos. Nossa apresentação o emocionou mais do que o esperado. Meu pai o agradece várias vezes antes de aceitar o presente: ele adora vinhos.

-O que achou dessa noite, Anika? -meu pai bagunça meus cabelos. Eles se embaraçam facilmente, ainda que eu os tenha cortado curtos: cabelos longos chamam atenção indesejada na estrada. Com um tom claro de castanho e formato ondulado, eles não tem nada de especial, mas gosto deles ainda assim. Sou tomada por sorrisos quando meu pai os afaga.

-Foi lindo. -eu o abraço.

Ele dá uma risada longa e contagiante, com os braços ao redor de meus ombros.

-Viu como fazemos diferença?

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Eu concordo com a cabeça. A cidade de Eichhorst sofreu uma grande perda: cobradores de impostos levaram seus primogênitos como escravos, quando o povo não conseguiu pagar seus impostos ao Império de Allure. Metade dos pais e mães da cidade assistiu suas crianças irem embora acorrentadas. Por causa disso, o novo-porta voz de Eichhorst, o senhor Schiller, nos convidou para uma apresentação ao ar livre, numa tentativa de reunir o povo arrasado.

No começo, não pensei que eu pudesse fazer alguma diferença: aquelas pessoas tinham perdido tudo, inclusive o que tinham de mais precioso. Uma noite de música e dança não traria nada de volta.

Hoje vejo como estava errada.

A recompensa material foi pequena; geralmente é. Ganhamos apenas o suficiente para nos alimentarmos por mais alguns dias e seguir viagem para a cidade seguinte. O povo, porém, compartilhou conosco o pouco que tinha, e isso me faz sentir muito orgulho de fazer parte de Oberon.

Ainda existe amor entre nós.

-E então? -eu pergunto. -Vamos ficar?

A ideia é bastante tentadora para mim, depois de meses nas estradas. De todas nossas apresentações, essa foi uma das mais memoráveis. Poderíamos ficar aqui: o povo de Eichhorst está precisando de um pouco de ânimo e não há ninguém melhor para isso do que Bastian e Anika Waltz.

-Talvez por alguns dias. -ele me joga alguns cruzados imperiais. -Sua parte, Anika. Fez um bom trabalho hoje.

Eu arregalo os olhos para as primeiras moedas que ganho como trovadora. Pode não comprar muita coisa, mas essas moedas significam muito para mim: eu e meu pai fazemos parte dos poucos trovadores que ainda restam em Oberon, vagando de cidade em cidade tentando trazer alegria ao povo. Não é um trabalho fácil e dependemos da caridade dos outros para sobreviver.

Não somos exatamente famosos, mas todas as cidades se animam com a chegada de um trovador. Meu pai está no ramo desde que deixou o circo: eles tiveram uma história trágica quando um grupo de nobres aurianos não apreciou sua performance. Toda a trupe foi exterminada. Desde então, meu pai tenta a sorte sozinho, de cidade em cidade. Isso aconteceu há 20 anos; eu ainda não era nascida, mas tenho medo de que um dia algo parecido aconteça comigo. Já apresentamos para soldados antes, mas por sorte ninguém implicou comigo ainda.

-O que você vai fazer se um cobrador de impostos aparecer? -eu lhe pergunto, preocupada. Até onde eu sei, nós nunca pagamos imposto nenhum. Trovadores precisam pagar impostos?

-Vou cantar e dançar até eles ficarem satisfeitos. -ele me dá uma piscadela. -Eu e você não somos agricultores, Anika. Pagamos nosso imposto com música e dança. É o que podemos oferecer.

Eu aceito sua explicação, mas sei que há algo de errado ali: algo que ele não quer me contar. Meu pai tem grandes cicatrizes no rosto, meio cobertas por sua barba charmosa, mas já ouvi um taverneiro dizendo que isso foi um castigo merecido por desafiar Allure. Meu pai não é o tipo de homem que daria qualquer coisa aos cobradores de impostos, muito menos sua filha, mas o que aconteceria se ele fosse cercado? Sei bem o que os homens de Allure fazem com suas escravas.

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-Ei. -ele se abaixa, me olhando nos olhos. -Ninguém vai tirar você de mim. Eu não vou deixar. Não importa o que aconteça. Você é a aprendiz de Bastian Waltz, Anika, e tem uma vida inteira pela frente. Vai ser a maior trovadora de Oberon. Você não sabe o quanto me deixou orgulhoso hoje.

Eu sorrio, um pouco envergonhada.

-Não sou assim tão boa.

Meu pai faz uma cara engraçada, como se eu tivesse acabado de falar o maior absurdo do mundo.

-Quando eu tinha 13 anos, a idade que você tem hoje, eu não sabia tocar nem uma única nota. -ele me dá um pedaço de pão, aquele que ganhamos da nossa plateia. Eu aceito; estava faminta. -Já você, minha pequena trovadora, fez homens e mulheres adultos chorarem com o som da sua voz. Você é a própria música de Oberon, Anika, o legado das poesias e melodias do nosso povo.

-Música? -eu me encolho. -Você está exagerando.

-Um verso, então. -ele me pega no colo, do jeito que fazia quando eu era pequena. Faz tempo que não o via tão feliz; não consigo parar de rir. -Uma linda ária. O melhor de todos os prelúdios: um dueto de lira e vocal que dará início à sua própria ópera. Que tal assim? Já estou cheio de ideias para essa nova composição. Vou chamá-la de “Anika Waltz: O Verso de Oberon”. O que acha?

-Bonita. -eu concordo. -Mas se vai usar meu nome, sou eu quem vai compor.

-Feito. -ele me põe no chão. -Desde que eu seja seu assistente.

Eu o abraço enquanto seguimos pelo leito do Reiner, em direção ao local onde ficaremos pelos próximos dias: uma antiga torre rio acima, transformada em taverna pelo proprietário atual.

Pela primeira vez em muito tempo, me sinto feliz por ser quem eu sou. Ainda há dores, ainda há tristeza, mas nossa música é forte e pode atravessar qualquer pesar; com meu pai me ajudando, escreverei a canção mais linda de todos os tempos, o Verso de Oberon, e até os soldados aurianos e cobradores de impostos vão chorar de emoção, tocados pelas minhas notas.

Antes que perceba, já estou cantando sozinha, imaginando as melodias para minha nova composição. Meu pai me acompanha com sua lira e, naquele momento, ainda que eu não pertença a lugar nenhum, não tenha onde morar e viva sem rumo pelas estradas, eu me sinto em casa.

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