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A Arca de Lafiore

 

Aquele foi o saque mais importante de toda a minha vida: se não fosse por ele, eu certamente já estaria nas profundezas dos Mares do Sul, na companhia de peixes e navios naufragados. Homens do mar não costumam ter uma vida longa, especialmente aqueles como eu: cedo ou tarde, todos nós ouvimos o chamado do oceano e sucumbimos ao seu charme, encontrando conforto num abraço cruel e gelado.

Já faz 10 anos, mas lembro-me daquela noite como se fosse ontem: o vento forte, as ondas gigantes e a tempestade demoníaca, misturando céu e mar. Ainda assim, eu só tinha olhos para o meu prêmio, boiando a algumas centenas de metros: um imenso quebra-gelo crisalino, recheado até o casco com ouro e tecnologia sulista, que nas mãos certas, vale mais que qualquer pedra preciosa.

Eu precisava pegá-lo.

Pensando de trás para frente, fui um idiota por não perceber que havia algo de errado, mas o dinheiro mexe com a minha cabeça: tudo o que eu enxergava eram cifrões piscando. Nunca imaginei que forças desconhecidas guiavam o navio até mim nem o que me esperava dentro dele.

E também, eu não poderia ter feito outra coisa; ia contra a minha natureza. Eu sequer pensei quando abaixei minha luneta e gritei para a tripulação, no convés da minha amada Donzela Tempestade.

-Canhões, homens! Vamos capturar aquela barcaça!

Eu adoro momentos como aquele: fazem toda minha vida valer a pena. Com um toque gentil no timão da Donzela, virei meu navio para cruzar o caminho do quebra-gelo, ignorando a chuva torrencial que inutilmente tentava nos afundar. O alcançaríamos nos próximos minutos e impediríamos a sua passagem. O quebra-gelo apagou seus lampiões, mas era tarde demais para querer se esconder de mim: os trovões me davam sua localização, enchendo a escuridão com sua luz pulsante. Eu nunca tive medo de navegar de noite. Com ou sem tempestade.

Meus homens abriram as escotilhas à estibordo e prepararam nossa fileira de canhões de 18 libras. A Donzela tem 6 deles nos seus deques inferiores: 3 de cada lado. A munição era contada: tínhamos o suficiente para mais 2 disparos, nada mais do que isso. Já havíamos gasto quase tudo o que tínhamos num pequeno conflito alguns dias atrás, e não costumo levar munição extra: a última coisa que desejo é uma embarcação lenta e gorda, incapaz de navegar direito.

Felizmente, a Donzela Tempestade é uma dama esbelta e charmosa, ágil como uma dançarina. Originalmente um veleiro fiorenze, ela não conseguiria competir com os barcos à vapor de Crisália, mas a Donzela tem um truque no casco que a permite alcançar altas velocidades: uma única quilha comprida capaz de rasgar as ondas como um sabre de marinheiro. Menor que uma caravela, ela pode levar até 60 marujos, mas apenas 20 me acompanhavam naquela noite: os outros 40 estavam no fundo do mar. O balanço era intenso, mas se não encarássemos a tempestade, o quebra-gelo, muito maior e mais estável, nos deixaria para trás.

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E eu jamais deixaria uma presa dessas escapar.

Com outro giro do timão eu inclinei a embarcação, que se manteve de pé apenas com a força contrária do vento e o contra-peso das velas escancaradas. Elas ameaçavam se rasgar a qualquer momento, mas aguentariam um pouco mais: eu precisava delas abertas para ganhar velocidade. A quilha afiada fez seu trabalho, permitindo à Donzela deslizar pelo mar como um golfinho. O vento levou meu chapéu embora e eu comecei a gargalhar quando aceleramos vertiginosamente. Estava funcionando. O mar inteiro se vergava para nos levar até nosso prêmio.

-Capitão Brando, nós vamos morrer! -queixou-se um dos marujos, atrapalhando o meu momento. Eu derrubei o molecote atrevido com um golpe de minha muleta, fazendo-o deslizar pelo convés encharcado.

-De pé, Pietro! Se não pegarmos aquele quebra-gelo, eu mesmo vou te jogar no mar! -não é fácil ser mais amedrontador do que uma tempestade nos Mares do Sul, mas eu tento. Pietro Pasquale, na época apenas um grumete, se levantou e acenou com a cabeça, correndo até o deque superior para ajudar os outros, que lutavam contra o vento, agarrados às cordas do mastro principal.

A Donzela Tempestade cortou as ondas lindamente, ficando à frente do gigantesco quebra-gelo como uma carruagem de guerra oberina. O vento frio me congelava até os ossos, mas encontrei calor ao imaginar os rostos perplexos dos crisalinos escondidos naquela imensa barcaça. Certamente nunca imaginaram que eu os alcançaria. Naquela época eu ainda não era conhecido em Crisália, mas já tinha causado muitos problemas em outros cantos do mundo.

Capitão Marcus Brando, o terrível pirata da Ilha de Bórdoba: para comerciantes do meu ramo, a fama é um negócio muito importante, e era por ela que eu fazia loucuras como aquela. Minha reputação estava precisando de uma ajudinha. Eu havia me metido com a Máfia de Rascone, o que atrapalhou bastante meu trabalho, principalmente depois que aqueles bastardos levaram embora minha perna direita. Ser procurado tanto pela Máfia quanto pelos olhos da lei acaba com os negócios de qualquer um. Com 43 anos de idade, eu já não era mais um jovem para sair pelo mundo em busca de aventuras, mas pelos céus, como eu queria aquilo: as águas escuras, a tormenta, as presas surgindo à distância e, naturalmente, o brilho do ouro.

Claro, Rascone também não me deixava escolha: se eu navegasse perto de Lafiore, uma hora me pegariam; por isso nos aproximávamos de lá apenas uma ou duas vezes por ano, para negociar as mercadorias. Mas isso não era problema: eu podia estar velho, mas ainda sabia navegar. Desbravaria até mesmo aqueles mares gelados, no extremo Sul do mundo conhecido.

A fumaça negra do quebra-gelo encheu a noite tempestuosa quando nós disparamos: todos os 3 canhões ao mesmo tempo. Atiramos duas vezes, esgotando a munição, ostentando recursos que não tínhamos: um blefe, é claro, para forçar o quebra-gelo à submissão.

Com imensa satisfação, observei a embarcação alvo reduzir a velocidade em pleno mar tempestuoso, indicando que não tentaria lutar mais. A Donzela deslizou até uma distância razoável, e quando ficamos lado a lado, saquei meu sabre e apontei para o quebra-gelo indefeso.

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-Preparar abordagem!

Dominar a tripulação foi fácil demais. Juntamos todos no deque principal do próprio quebra-gelo: quase quarenta marinheiros crisalinos, com meia dúzia de guarda-costas inúteis que nem tentaram reagir. Eles estavam em maior número, mas não sabiam disso e não deixei que soubessem, mantendo alguns homens na Donzela Tempestade para fazer número e intimidar.

Meus homens apagaram as chamas da sala das máquinas e causaram uma pane geral, fazendo o quebra-gelo perder velocidade até parar. A Donzela Tempestade, amarrada ao pesado quebra-gelo com nossos ganchos e arpões, não iria a lugar nenhum. Caminhei pelo convés e fiz minha oferta de sempre aos crisalinos: morrer agora, ou tentar a sorte como um escravo de Allure.

Quase todos aceitaram a oferta.

Forçamos os crisalinos a carregar tudo que pudessem até minha querida Donzela Tempestade. Havia mais dinheiro do que eu podia contar, além das bugigangas crisalinas de sempre: artefatos de metal que soltavam fumaça e máquinas inúteis que pouco faziam além de apitar. Levei tudo. Em questão de minutos estávamos de volta na Donzela Tempestade, com nossos novos escravos agrilhoados um ao outro na parte interna do casco, inundada até a cintura.

A tempestade se amainou conforme navegávamos para fora dela. Depois de revisar nossa rota com o navegador e deixar o timão nas mãos do contramestre, desci até minha cabine para contemplar a peça mais valiosa de todo o saque: uma belíssima arca negra diemér, cravejada de diamantes do tamanho de um punho. Se fosse verdadeira, somente essa peça poderia me comprar um castelo: artefatos da extinta Diemera tinham um valor incalculável no mercado negro.

Ansioso, limpei a superfície da tampa, suja com o sangue do único homem que tentou protegê-la, um pobre coitado que não parava de falar sobre maldições. A arca adquiriu um lustro negro que fez meu coração palpitar. O que poderia haver dentro de uma caixa tão luxuosa? Minha imaginação corria solta. Devagar, eu testei o enorme fecho de metal: nunca tinha visto uma tranca tão elaborada. Ainda assim, todas as travas se abriram sozinhas quando encostei nelas.

A arca então começou a gargalhar.

Meu susto foi enorme. Xingando todos os deuses que conhecia, eu derrubei a arca bem na hora em que uma névoa verde começava a sair do seu interior. Meus homens correram para dentro, com espadas desembainhadas, e eu puxei meu próprio sabre, ficando atrás deles.

A fumaça parecia viva, percorrendo o interior da minha cabine com imensa curiosidade. Eu nunca tinha visto algo igual. Aquela névoa sinistra espalhou-se e cresceu, até começar a tomar forma.

Em instantes, estávamos olhando para um homem de fumaça.

-Mas o que é isso? -eu perguntei, curioso.

O homem de fumaça se aproximou. Aterrorizados, meus homens tentaram golpeá-lo, mas suas lâminas passaram através dele. O homem riu quando tentaram cortá-lo e flutuou direto até mim.

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Meus pelos da nuca ficaram de pé, mas não recuei. O fantasma me examinou, se divertindo com a reação dos meus homens, que correram todos para o fundo da cabine, se esquecendo de que eu era o capitão e podia jogá-los no mar por sua covardia. Isso é o que acontece quando se lida com…

-Piratas? -o fantasma comentou, com uma voz espectral.

-Capitão Marcus Brando, da Ilha de Bórdoba. -respondi, sem soltar meu sabre um instante sequer. -Terror dos Mares do Sul. -tinha acabado de inventar aquele título, mas o fantasma não sabia disso.

Ele materializou um cachimbo de fumaça verde e soltou uma baforada em mim. Resisti ao impulso de tossir: aquela névoa não era como nada que eu já tivesse fumado antes, ainda que, depois de décadas frequentando os piores cabarés do arquipélago fiorenze, eu fosse bem versado no assunto. Eu pisquei várias vezes para me certificar que ele era mesmo real; não me lembrava de ter bebido. Ao menos, não o suficiente para enxergar alucinações.

O homem de fumaça abriu um sorriso sulfuroso.

-Deixe que eu me apresente: meu nome é Nero Cortez. E assim como você, eu também sou um fiorenze. Nós dois somos muito mais parecidos do que você imagina, Capitão Brando: há quase 3 mil anos, eu também estive exatamente onde você está agora. Como você, eu fui um Campeão do meu povo; aquilo que nosso arquipélago tem de mais precioso. -ele indicou a arca caída aos meus pés. -No passado eu fui a Arca de Lafiore, guardião de terríveis segredos que decidiriam o futuro do mundo. Hoje, esse destino pertence a você.

Eu não me achava nem um pouco parecido com o homem de névoa verde, mas diferente de quebra-gelos crisalinos ou tempestades em alto mar, assombrações não eram minha especialidade.

-O que você quer? -perguntei, assim que percebi que ele não queria me matar. Pelo menos não ainda.

-Eu esperei naquela arca por 2.700 anos. Fui traído e aprisionado por Millenium Noon, o maldito Campeão diemér. Eu tinha tudo para ganhar; meu plano era perfeito; mas aquele desgraçado me apunhalou pelas costas, com a ajuda da Campeã jahrinesa. Aquela vagabunda. -ele grunhiu.

Simpatizei com o fantasma: é uma droga ser traído por alguém que você mesmo planejava trair. Você se sente um grande idiota. Como pirata, já estive dos dois lados da moeda; sei do que estou falando.

-É uma pena que isso tenha acontecido. -estranhei minha própria sinceridade. -Mas o que te trouxe para dentro de uma caixa num quebra-gelo crisalino, navegando no meio de uma tempestade nos Mares do Sul?

-Você me trouxe. -ele piscou para mim. -Quero te agradecer por me soltar, Capitão. Na verdade, eu tenho um trabalho para você: um trabalho excelente, em terra firme, que envolve os outros 8 países e o futuro de Lafiore. No passado, outro antigo Campeão fiorenze apareceu para me guiar. Hoje, faço isso por você. -ele começou a me rodear, me envolvendo com aquela fumaça.

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Eu conhecia aquela conversinha: o homem de fumaça falava da mesma maneira que a Máfia de Rascone, um pessoal que eu conhecia muito bem, da época que meus negócios ilícitos eram apenas terrestres. Eu podia ser alguns milênios mais novo, mas não iria deixar um fantasma me passar a perna.

-Sinto muito, amigo, mas estou bastante ocupado. Não posso aceitar trabalhos do além túmulo. Mas se preferir, posso jogar a arca no mar. Tenho vários defuntos conhecidos lá embaixo: alguns que eu despachei ainda hoje. Tenho certeza que eles adorariam te conhecer. -eu pisei na arca.

Naturalmente, jamais faria isso. Aquela arca era valiosa demais.

-Espere! -Nero tremeluziu, caindo no meu blefe. -Você é um pirata, não é? Gosta de tesouros. Eu jamais te pediria para trabalhar de graça: eu conheço segredos que deixariam qualquer Campeão com água na boca. Posso te contar tudo sobre o que o aguarda, inclusive quem são seus inimigos e quais seus poderes. Além disso, existe uma grande recompensa te esperando.

Eu o examinei por bastante tempo, usando minha máscara de regateador, mas a verdade era que o fantasma já havia capturado minha atenção: não me interessava a mínima por aquela besteira de Campeões e eventos de 2.700 anos atrás, mas bastou falar em recompensas e toda a estranheza daquele encontro desapareceu. Eram apenas negócios, e negócios com um grande potencial, ainda que eu estivesse lidando com um homem feito de fumaça.

Algo em meu interior se acendeu naquela noite, na presença de Nero Cortez, e desde então nunca mais se apagou. Ainda assim, 40 anos vivendo à margem da sociedade me ensinaram a ser precavido.

-Eu sou um homem procurado nos dois arquipélagos, meu amigo. Muita gente está atrás da minha cabeça: vou precisar de uma recompensa bem grande para me convencer a pisar em terra firme de novo.

O fantasma gargalhou.

-Ah, essa recompensa vai valer a pena, Campeão fiorenze. Sem sombra de dúvida. Você já ouviu falar na Ruína Dourada?