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A Flecha de Kamali
O pequeno Range corria através de um oceano de plantas; o mesmo oceano que aqueles pezinhos já tinham pisoteado tantas vezes antes, mas dessa vez era diferente. Dessa vez, Range não temia por si mesmo; ele temia por Kamali.
Aquela floresta era familiar para Range; ele a conhecia tanto quanto conhecia a si mesmo; vivera ali sua vida inteira. Conhecia cada árvore, morro e clareira. Fora naquela mesma floresta que Range armara sua primeira armadilha; fora ali que aprendera a se mover suavemente, imitando o movimento dos tigres; fora ali que aprendera a atirar com o arco e flecha e a usar gravetos para acender o fogo; fora ali que aprendera a matar e fora ali que aprendera que, um dia, também iria morrer.
Fora bem ali, debaixo das copas frondosas da Floresta dos Espíritos, que a certeza da morte lhe preenchera com um sentimento pleno, afirmando sua pequeneza e lhe ensinando que o pequeno Range fazia parte da floresta tanto quanto as gigantescas árvores milenares, que sufocavam a luz solar, os pássaros recolhidos em seu ninho, os macacos senhores das copas, os terríveis predadores listrados e até o menor dos gafanhotos-rubros, pestes vorazes numa plantação, mas vítimas condenadas diante de uma teia de aranha. Range era parte dela; Range era Kamali.
E era por isso que assistir à floresta morrer doía em seu próprio corpo.
O garoto engoliu suas lágrimas, pois sabia que seriam inúteis agora. Quantas vezes já não olhara nos olhos de um veado ou coelho, vendo a morte refletida naqueles dois grandes glóbulos pretos e molhados? Eles sabiam que morreriam; e por isso desistiam de tentar. Chorar não adiantaria nada; seria como esperar o predador chegar. Range sabia como o mundo funcionava e sua única certeza era a de que, se nada fizesse, encontraria apenas a morte. Não a sua. Mas a de Kamali. E mesmo pequeno, Range jamais permitiria que seu povo fosse devorado.
Range era Kamali, e Kamali não iria morrer, não se ele pudesse impedir. Ele tinha apenas 11 anos, mas morara na floresta metade de sua pequena vida. Conhecia aquele lugar e sabia para onde estava indo. Ofegante, o garoto confiava em suas pequenas pernas fortes e musculosas para mantê-lo em movimento. Não podia parar agora. O tempo era precioso; já tinha visto incêndios antes e conhecia a velocidade com a qual o fogo devorava um oceano de folhas e madeira.
Quando viu as chamas perto de si, porém, as pernas de Range estremeceram e ele caiu de joelhos. Diante de seus olhos, a floresta ardia. Labaredas corriam pelas copas das árvores como cavaleiros do Sacro Império em suas carruagens de guerra, histórias de lugares distantes que seu pai lhe contava. Com suas lanças e espadas de fogo, derrubavam as milenares árvores da Floresta dos Espíritos e laceravam a carne de Kamali com a voracidade de um tigre faminto. Legiões de demônios tornados chamas, incinerando tudo aquilo que era belo e sagrado para o pequeno Range.
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Em seu torpor, ele viu de relance as criaturas aterrorizadas que passavam por ele em desespero e agonia. Corças carniceiras, pequenos javalis monteses, até mesmo veados de ossos negros com seus crânios expostos, reis e rainhas de seus impérios, guinchavam e singravam a terra como galés fiorenzes destinadas ao naufrágio. No alto, pavões-fantasmas urravam com suas penas brancas chamuscadas, revoadas de andorinhas-do-crepúsculo se dispersavam em pleno voo, até mesmo um majestoso abutre cinzento abandonava o ninho, enquanto sua companheira de uma vida inteira se recusava a segui-lo, escolhendo ficar para trás junto com suas pequeninas crias indefesas, incapaz de deixá-las para trás, ainda que isso assinasse sua sentença de morte.
Ao ver a mamãe abutre envolver os filhotes que gorgolejavam com suas asas pequeninas, Range foi tomado por uma tontura pestilenta, incapaz de não enxergar a si mesmo naquele gesto de imensa beleza e estupidez. Sua própria mãe já fora tomada pela morte, engolida pela floresta junto de seus ancestrais. Ela vinha sendo consumida pela doença por anos a fio, mas aguentou firme por Range, ao menos até que ele estivesse crescido e pudesse andar com as próprias pernas, ou o mais perto disso que conseguiu. A mãe de Range morreu quando ele tinha 5 anos; mas se ainda estivesse viva, ela não hesitaria em morrer de novo para protegê-lo.
Range não deveria voltar. Na noite anterior, seu pai lhe contara sobre o exército invasor e sobre uma princesa estrangeira capaz de incendiar vilarejos inteiros com um piscar de olhos; lhe contara do chamado para a guerra; e que nenhum vilarejo continuaria seguro antes da guerra acabar. Seu pai ordenara que ele corresse para frente e jamais voltasse, não importava o que acontecesse; ainda assim, ele sabia que jamais conseguiria fazer como aquele imponente abutre cinzento, que alçava voo com suas asas poderosas e deixava sua família para morrer.
Range era apenas uma criança. Mas se seu pai havia conseguido lhe ensinar alguma coisa nesses 6 anos em que viveram juntos, era a confiar em seus próprios instintos. Ainda havia algo dentro do pequeno Range que lutava pela sua sobrevivência; algo regido pelo medo; mas havia outra coisa também, algo dezenas, centenas de vezes mais forte do que o medo da morte, e era essa segunda coisa que colocava o garoto em movimento, em direção à floresta em chamas, em direção ao vilarejo Kokoua, em direção ao seu pai e ao terrível exército auriano e sua princesa demoníaca, que transformavam tudo que Range já amou no inferno na terra.
O peito do garoto se estufou e ele se encheu de orgulho ao pensar no pai, respondendo ao chamado para a guerra. Sim, seu pai o havia deixado, sozinho na Floresta dos Espíritos, mas Range não nutria mágoa por isso. Havia apenas orgulho: seu pai o amava como amava Kamali, e era esse amor que o fizera deixar seu único filho para trás. Ele era o maior guerreiro de Kamali; era o maior guerreiro do mundo todo. Princesa nenhuma iria conseguir derrotá-lo. Ele era capaz de capturar o mais furtivo dos veados de ossos negros, era capaz de assustar um tigre adulto com o seu rugido e podia acertar um gafanhoto-rubro nos olhos com uma única flechada.
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Seu pai não iria perder. Ele era invencível. Seu pai era o verdadeiro imperador de Kamali, não aqueles velhos tolos que governavam o vilarejo Koli, a antiga capital do país, que já havia sido destruída e tomada pelos invasores. Seu pai era um chefe melhor que até mesmo os anciãos de Kokoua, vilarejo onde Range tinha nascido e vivido até que seu pai o levasse consigo para a floresta. Nenhum deles entendia a floresta, não como o seu pai, e portanto nenhum deles tinha nenhum direito de governá-los, fosse o tolo Brado Keo, chefe de todas as tribos, ou seu conselheiro, o covarde Zolo Yetu, que queria dobrar os joelhos para os conquistadores de Allure.
Pensando em seu pai, Range rugiu como os tigres da Floresta dos Espíritos, invocando os seus ancestrais para que o guiassem através da floresta, desviando das árvores que queimavam. O calor sufocante o envolveu, mais forte do que qualquer dia de verão, e o pequeno Range fechou os olhos, sentindo as chamas passando por ele, deixando que seus ancestrais guiassem suas pernas, fosse para longe do perigo, fosse para a morte certa. Seu destino estava nas mãos deles.
Passaram-se minutos excruciantes, tingidos de calor e terror, mas Range nunca parou de correr. Aos poucos, ele afastou-se da zona de maior perigo, saindo da rota do vento, que espalhava os demônios da princesa sobre a floresta, encontrando rotas mais seguras de volta para o vilarejo Kokoua.
Ao invés de encontrar sua cidade natal, porém, tudo o que o pequenino Range viu foi uma terra seca e devastada, aleijada por ferimentos de guerra. De olhos arregalados, ele cambaleou pela imensa clareira, cercada de árvores que ainda queimavam entrecortadas por madeira transformada em carvão. Novamente, suas pernas tentaram traí-lo, enfraquecendo seus joelhos, mas o garoto não cedeu. Á frente, podia ver seus conterrâneos, o povo de Kokoua, parado diante de seus conquistadores.
Havia uma única tropa de Allure, comandada por um homem alto e forte, de cabelos e barba loiros e uma armadura dourada. Eles não chegava a vinte homens, enquanto os guerreiros de Kamali somavam pelo menos uma centena, sem contar as mulheres e crianças, que também podiam lutar. Pintados com as cores de guerra e vestindo os trajes de seus antepassados, os guerreiros kamali, outrora tão imponentes quanto tigres e lobos, tinham nos olhos a cor da derrota. Uma derrota mais humilhante do que tudo o que o jovem Range já havia sentido. Homens fortes, músculos poderosos, deixavam suas lanças e machadinhas caírem na terra devastada, junto de suas esperanças e dignidade, prostrando-se diante daqueles meros vinte soldados, seu jovem comandante de armadura dourada e a terrível arma de destruição que traziam consigo.
Deslumbrado, Range olhou para a princesa de Allure.
Ela era pequena. Muito pequena. Era uma criança; ainda mais jovem do que o próprio Range. Mesmo assim, sua presença se espalhava pelo ar como as próprias chamas incandescentes, tomando conta do campo de batalha com terrível naturalidade. Ele era linda: pequena e graciosa como uma flor. Era a única coisa por ali que não fora maculada pelo horror da guerra; tinha uma pele bronzeada e delicada e cabelos loiros ondulados; mas era o seu olhar resoluto que fez Range parar de se aproximar. Ela observava as chamas consumirem Kamali com um olhar plácido. Não sorria, mas também não havia violência ali. Não era um olhar humano.
Era o olhar de uma Deusa.
De onde estava, Range não podia ouvir o que discutiam, mas conseguiu ver quando o chefe de Kamali, Brado Keo, empunhou as duas machadinhas que carregava na cintura, conhecidas por todo o país como Kali e Mia, as duas Deusas gêmeas da tribo Kamali, alegorias da guerra. Eram relíquias que passavam de chefe em chefe por gerações, datando de nove séculos atrás. Com um berro, Brado Keo avançou sobre a garotinha, decidido a esquartejá-la com vários golpes poderosos.
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Ele mal se moveu antes da princesa matá-lo.
A expressão dos soldados ao redor da garotinha nem chegou a mudar. Nenhum deles temia por ela. O único que se alterou foi o comandante de armadura dourada, que contemplava aquela criança com uma adoração fanática. Kali e Mia tombaram primeiro, com suas lâminas seculares incandescentes. Brado Keo tombou alguns segundos depois, a cinco metros de distância da menina, sem jamais tocá-la. Seu corpo tinha sido incinerado; suas roupas e cabelos se desfizeram, seus olhos evaporaram e sua carne cozinhou, matando-o instantaneamente e desfigurando seu cadáver.
-De Joelhos. -ordenou a princesa, e dessa vez Range ouviu-a com clareza.
Zolo Yetu, o conselheiro de Brado Keo, hesitou por apenas alguns instantes. Toda a honra e orgulho de sua tribo fora reduzido a isso. Alguns breves instantes. Foi tudo o que Zolo Yetu conseguiu conceder a Kamali, antes de se ajoelhar diante de sua conquistadora. Range observava a tudo estupefato, incapaz de compreender o que tinha acabado de ver. Aquela garotinha era capaz de comandar as chamas do inferno, as mesmas chamas que devoravam a Floresta dos Espíritos.
Uma única criança tinha derrotado Kamali.
O comandante de armadura dourada se aproximou da princesa com um manto branco, pronto para cobri-la, já que o manto anterior havia se incinerado junto com o impetuoso Brado Keo, mas a princesa recusou-o. Não parecia incomodada com sua nudez, mas ainda que fosse apenas uma criança, sua figura nua no campo de batalha aumentava a estranheza de Range. Ela era humana. Era humana como ele, mas todos ali já pensavam diferente, derrotados antes de sequer tentar combatê-la. Brado Keo podia ser um tolo, mas ao menos a havia desafiado. O que Zolo Yetu fazia?
Range estremeceu de ódio.
Aquela princesa não era uma Deusa. Ela era humana, era humana como ele, tinha dois olhos, pernas e braços, cabelos loiros como os seus e podia até ser uma porca auriana, mas até mesmo porcos sangravam. O pequeno kamali sentiu a ira queimar em seu interior com tanta força quanto as chamas da princesa, temperada pela vergonha e humilhação de ver o seu povo de joelhos. Onde estava seu pai? Ele deveria estar ali. Deveria estar ali, defendendo Kamali, protegendo o seu povo. Seu pai deveria estar ali para matar aquela garota; ele poderia fazer isso; não era tolo como Brado Keo nem covarde como Zolo Yetu. Ele armaria uma emboscada e a pegaria desprevenida; poderia preparar uma armadilha, ficaria de tocaia, a surpreenderia com um ataque surpresa; seu pai poderia fazer isso. Ele era capaz.
Seu pai, porém, não apareceu. Não naquele momento.
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-Seu líder recusou a misericórdia de Allure. -exclamou o homem de armadura dourada; Range podia ouvi-lo agora; ele falava para todos, queria ser ouvido; estava fazendo um discurso. -E o que a sua rebeldia trouxe a Kamali? -ele apontou para o corpo incinerado de Brado Keo. -Seu líder está morto. Todos puderam ver o poder supremo de Lance Aura reencarnado na Princesa Victoria. Allure tem o direito soberano sobre todos os povos deste planeta e Kamali aprenderá isso de joelhos. -ele apontou dessa vez para Zolo Yetu. -De hoje em diante, qualquer kamali vivo, homem, mulher ou criança, é um servidor de Allure. Vocês terão uma nova chance de redenção: tornando-se escravos do nosso Império, buscando sua dignidade perdida através do trabalho duro. Kamali pertence a Allure e qualquer um que se recusar a dobrar os joelhos terá o mesmo destino dessa floresta. -ele fez uma mesura para a garotinha, que encarava o vazio com aquele mesmo olhar plácido. -Princesa, gostaria de acrescentar algo?
Ela esticou a mão para o comandante, calando-o.
-Já chega, Archen. -ordenou. -Falar não adianta nada. -seus pés deixaram o chão e a princesa alçou voo, rodeada pelas suas chamas. O povo kamali, encolhido atrás de seus guerreiros derrotados, soltou gritos de horror enquanto encaravam a garotinha flutuante com suas labaredas diabólicas. Nunca tinham visto esse tipo de poder antes. Ela então apontou as mãos para frente e uma fileira inteira de pessoas foi carbonizada com o seu gesto.
Range sentiu seu coração ser esmagado; em um piscar de olhos, dezenas de pessoas perderam a vida. Não houve tempo para gritar, chorar, não houve tempo para nada. A princesa então apontou suas duas mãozinhas para frente e uma labareda gigantesca se desenhou no ar, revivendo o incêndio. Se havia alguma esperança da floresta se recuperar, essa esperança acabara de ser incendiada também.
Impotente, Range assistiu ao seu país arder. Ele nunca se sentira tão fraco quanto naquele momento; nada do que pudesse fazer salvaria Kamali. Mas a princesa não parecia saciada; não ainda. Com um olhar entediado, ela esticou sua mão esquerda para uma família kamali que se abraçava aos prantos, transformando-os em carvão. Dessa vez, o pequeno Range quis fazer alguma coisa: quis se levantar a gritar, quis apanhar uma pedra e atirar na garota, quis implorar por misericórdia, quis fazer qualquer coisa, mas não conseguiu se mover. Estava paralisado. O menino chorou em silêncio, amaldiçoando sua própria covardia, mas seu choro foi cortado na metade, quando um único homem se destacou do grupo de guerreiros kamali.
-É o suficiente. -ele exclamou com sua voz poderosa, carregada de dor, mas também de um rancor sufocado. -Você não precisa matar mais ninguém. Kamali foi derrotada, meu povo já está de joelhos. Nos rendemos. Apague suas chamas. A floresta não precisa pagar pelas guerras dos homens.
Range arregalou os olhos. Era seu pai. Seu pai estava ali; ele estivera ali, lutando por Kamali, junto dos outros guerreiros. O tempo todo estivera ali, ajoelhado, submisso. Mas Range não acreditou que seu pai havia se rendido: ele era o mais poderoso de todos. Se havia alguém capaz de parar aquela princesa demoníaca, esse alguém era ele. Ele estava somente fingindo submissão: só podia ser isso. Era como as corças carniceiras, que se fingiam de feridas para atrair suas presas.
A voz estrondosa do pai de Range chegou aos ouvidos da garotinha, que o examinou de relance, com um vislumbre de curiosidade em seus olhinhos cor de esmeralda. O coração de Range ficou suspenso: o terror equilibrado pelo imenso orgulho que sentiu pela coragem de seu pai.
Orgulho que durou até a princesa transformá-lo em cinzas.
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-Não! -gritou o pequeno Range, revelando-se de seu esconderijo. O seu mundo desabou junto do cadáver de seu pai. Ele havia suportado a perda da mãe, a dura vida na floresta, havia suportado ver as plantas e os animais que tanto amava sendo destruídos, havia suportado ver seu antigo vilarejo em cinzas, havia suportado ver seus líderes ardendo ou de joelhos, mas ver seu pai, morto como um inseto, era algo que ele não suportou. E jamais suportaria. A dor que ele sentiu naquele único instante o transformou para sempre, abrindo um buraco negro e profundo em seu peito, levando embora um pedaço insubstituível do pequeno garoto kamali.
-Um fugitivo. -disse o homem de armadura dourada, apontando para Range. A princesa, facilmente entediada, não se moveu em sua direção. Ao contrário: ela desviou o olhar e voltou para o chão. Havia cansado de matar; não havia mais aquele brilho de interesse. Ver tamanho descaso, ver a desimportância que Range e seu pai tinham para ela, consumiu o garoto por dentro.
Range urrou. Um grito primal, carregado da ira de Kamali. Todos os homens e mulheres queimados estavam com ele nesse grito: seu pai, o inconsequente Brado Keo, até mesmo aqueles que ele não conhecia; seus avôs e avós, antepassados distantes; estavam todos ali, gritando com ele, chorando com ele, e quando o garoto se virou e correu para dentro da floresta, todos eles corriam com ele também; sabendo que aquele pequeno garoto era tudo que restara do futuro de Kamali.
E quando os homens de Allure o encurralaram como um animal, e Range precisou escolher entre deixar-se capturar ou mergulhar para dentro da floresta em chamas, a escolha não foi assim tão difícil.
Nunca vou me esquecer do dia em que meu país foi morto, pois também foi o dia em que o pequeno Range Jago se foi, deixando de ser criança para se transformar num fantasma. O carrego comigo dentro do peito; lembranças do menino que um dia fui. Mas basta um único olhar para as cicatrizes hediondas que cobrem meu corpo para me lembrar de quem sou agora. Basta um único pensamento e a dor de ser queimado vivo volta a me consumir, me mantendo sempre forte e afiado.
Hoje, sou o campeão de Kamali. E, se não for o último kamali vivo, sou pelo menos o único que não se dobrou. O fogo pode ter tirado o melhor de mim, mas assim como o calor é capaz de moldar o ferro, o incêndio moldou a mim: deixei de ser homem para me transformar em arma. A Floresta dos Espíritos ardeu em chamas, mas a dor de Kamali ainda vive, e eu vou levá-la de volta à Allure. Vou encontrar a princesa assassina, vou preparar meu arco, vou colocá-la de joelhos e vou lançar minha flecha.
E quando isso acontecer, Allure saberá que Kamali ainda respira, quebrado e queimado, aleijado e humilhado, mas vivo. E ao cair trespassada, vendo seu sangue vermelho jorrar pela primeira vez, sua campeã se lembrará de mim, enquanto a ensino da pior maneira que deuses não existem.