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A Sombra de Jahri
Não há nada que seja imune às areias do deserto de Zaiba. Cruel e majestoso, ele se espalha por todo o Reino de Jahri, preenchendo o horizonte por todos os lados. Seus incontáveis grãos penetram as tendas, sacolas e até as roupas do corpo. Não há nada que ele respeite, nada que seja capaz de freá-lo. As areias engolem até mesmo as águas dos rios, matando de sede homens e animais nos longos períodos de seca. Elas são poderosas justamente por não terem forma: as areias mudam, se ajustam; se dividem e se espalham quando tentam pegá-las nos dedos.
Assim como eu.
Meu nome é Nagini Amana, mas todos me chamam de Nagi. Não são muitas as órfãs jahrinesas que têm sobrenome, mas eu não nasci órfã. Muito tempo atrás, também tive família. Até o dia em que a Cidade-Fortaleza de Lafel foi tomada. As muralhas caíram e os homens de Allure entraram.
Não houve prisioneiros.
Mamãe e papai morreram. Nadya, minha irmã mais velha, desapareceu quando nos separamos. A mim, uma criança estúpida e chorona de 6 anos de idade, só restou fugir da cidade sitiada. Aos prantos, eu corri para o deserto, tentando não ser pisoteada pelos outros refugiados em fuga.
Poucos órfãos chegam até os 15 anos de idade. Sem alguém decente para cuidar de você, a maioria morre cedo, especialmente as meninas. Ninguém dá valor para uma garota de rua, e com aqueles que dão, você precisa tomar muito cuidado: nunca se sabe para onde vão te levar.
Sendo sincera, não sei como ainda estou viva; dos milhares que fugiram para o deserto, apenas um punhado chegou até a cidade de Bahagash, nosso destino final. Boa parte se dispersou para vilas menores, integrou caravanas ou se instalou junto a rios e oásis, mas a esmagadora maioria morreu de calor, sede e fome. Eu faço parte do pequeno grupo que chegou até o litoral.
Foram meses de caminhada no deserto, sem água nem comida, roubando uns aos outros para sobreviver. Foi lá que aprendi meu ofício: um grupo de crianças mais velhas me ensinou, desde que eu roubasse para eles.
Os refugiados de Lafel, apesar de pobres, tinham muitos pertences. Afinal, aqueles homens e mulheres levavam consigo tudo o que tinham. Havia muito para se roubar e eu faria qualquer coisa por uma fatia de pão ou um gole de água. Além disso, passamos por muitas vilas e caravanas no caminho, que nos apresentavam novas oportunidades para o crime. Roubar não é algo tão complicado: até uma criança de 6 anos consegue bater carteiras num momento de necessidade.
E eu era especialmente boa nisso. Pequena e furtiva, ninguém suspeitava de mim até que fosse tarde demais. Ia e vinha quando queria, sem chamar atenção, pegava o que queria e desaparecia na multidão.
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Perto dos meses no deserto, os anos em Bahagash foram um luxo. Com acesso ao mar, a cidade tem vários rios de água doce e comida em abundância para quem puder pagar. Ela também tem seus becos e suas gangues, com quem acabei me enturmando. Claro, eu não tinha muitas opções: precisava sobreviver até o dia seguinte. Objetivos simples, soluções simples.
Também foi em Bahagash que despertei meus poderes.
Eu havia me metido em uma situação complicada, dentro do território de uma gangue rival, na zona da cidade. Nem me lembro porque fui lá. Eles eram chamados de Escorpiões: o dono deles, Salman Zadel, chefiava o maior cabaré do local, o Escorpião de Seda, e roubava crianças para trabalharem para ele como cortesãs. Eu e as outras meninas de rua morríamos de medo daquele velho nojento. Naquela parte da cidade era comum ver garotas muito jovens vestindo as sedas perfumadas dos Escorpiões, acenando para clientes nos becos e esquinas.
Todos os dias uma ou duas crianças sumiam das ruas somente para aparecerem junto dos Escorpiões: os meninos se tornavam gatunos baderneiros enquanto as meninas eram treinadas pessoalmente pelo dono do negócio. Se alguém passasse lá de noite, podia ouvir os gritos e choros das meninas que não o obedeciam. Depois de alguns anos, quando elas cresciam um pouco, ele as vendia como escravas para os mercadores mais ricos que passassem por lá.
Com 9 anos, eu tinha a idade perfeita para o dono do lugar. Uma vez nas mãos dele, minha vida estaria acabada. Já vira o que era feito com as garotas que tentavam fugir e preferia morrer ao passar por aquilo.
A zona da cidade era um local ótimo para encontrar pessoas distraídas e cheias de dinheiro; eu já havia estado ali muitas vezes. Daquela vez, porém, fui pega de guarda baixa; antes que eu pudesse fugir, um grupo de 5 pivetes que trabalhavam para Salman me encurralou numa viela.
-A Rata de Fogo. -o mais velho deles exclamou, evocando aquele apelido odioso. Odiava que me chamassem assim.
Os Escorpiões me deram esse nome por causa dos meus cabelos: eles são vermelhos, uma cor rara em Bahagash, mas bastante comum no Sul. Meus olhos são verdes, o que é mais usual. No geral, eu era uma garota jahrinesa padrão. Não tinha nada de muito especial. Mas para os Escorpiões, bastava ser fêmea e eu já teria ótimos usos: eles aprendiam suas maldades com Salman e eu sabia o que me esperava. Era isso que me aterrorizava.
-Está perdida, ratinha? -outro deles se aproximou. Estavam todos rindo, pensando no que fariam comigo antes de me entregarem para Salman. Ele não se importava com o que seus Escorpiões faziam com garotas como eu: enquanto estivessem bonitas, ainda eram um bom negócio.
Tentei fugir, mas eles me agarraram. Pernas e braços imobilizados: incapaz de correr, incapaz de me defender. Chorei de frustração, desejando ser forte para conseguir machucá-los, e foi exatamente isso que me aconteceu. Meu desejo foi tão forte que as sombras na parede me obedeceram.
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Em plena luz do dia, tentáculos negros se ergueram na escuridão do beco, atacando aqueles garotos com garras e dentes. Furiosa, eu os golpeei desenfreadamente. Afiadas como lâminas, as sombras perfuraram e cortaram, passando através de carne e ossos como se fossem areia. Eu rugi como um demônio e só parei quando não havia mais nenhum pivete vivo.
Não era a primeira vez que eu matava alguém, mas aquilo me assustou: nunca imaginei que eu, uma ladra refugiada de Lafel, faria um massacre nos becos da zona de Bahagash. 5 meninos mortos num piscar de olhos. Sangue fresco e pedaços esquartejados encheram meus olhos e eu chorei.
Sabia que estava encrencada: todas as crianças naqueles lados da cidade trabalhavam para Salman Zadel. Era uma questão de tempo até que me descobrissem. Desesperada, fugi de lá toda ensanguentada, de volta para a minha gangue. Nós nem nome tínhamos, mas ao menos éramos livres. Não havia um adulto nos dando ordens e, desde que eu roubasse o suficiente para todo o grupo, ninguém me espancaria ou faria maldades comigo.
Bem diferente de Salman e suas crianças.
Voltei correndo para o meu cantinho, em cima da velha loja abandonada onde eu morava. Fiquei encolhida ali, em cima da laje, embrulhada nos meus panos velhos e sujos, como fazia todas as noites.
Não contei a ninguém sobre meus poderes e meus companheiros de quarto não me fizeram perguntas: era comum um de nós voltar chorando e se esconder ali por algumas horas, querendo desaparecer do mundo. A maior parte das crianças passava o dia nas ruas, roubando ou pedindo esmolas, mas sempre havia alguém lá em cima, não importava o horário. Fiquei lá até o anoitecer, me sentindo ao mesmo tempo amedrontada e furiosa. Não era a primeira vez que eu descontava minha raiva em alguém, mas era a primeira vez que o resultado era tão assombroso.
Eu estava ansiosa para fazer de novo.
Pelas próximas semanas, me dediquei à minha nova habilidade. Descobri que durante a noite meus poderes alcançavam sua capacidade máxima: quanto menos luz, mais forte eu ficava: eu era capaz de moldar as sombras no formato que desejasse, controlando-as como se fossem pedaços do meu próprio corpo. Podia deixá-las macias como seda ou afiadas como navalhas.
De dia, elas tinham um tamanho pequeno, limitado e desapareciam sob o sol, mas na presença da lua, eu podia erguer sombras de tamanhos monstruosos, que engoliam tudo ao seu redor como as areias do deserto de Zaiba. E quanto mais eu praticava, melhor eu ficava em controlá-las.
Minhas primeiras vítimas foram membros de gangues rivais: eu os assustava e afugentava. Descobri que era melhor mantê-los vivos, para que espalhassem sobre mim. Ainda assim, matei vários que tentaram reagir: os corajosos que atacavam ao invés de fugir. Isso expandiu nosso território e aumentou muito nosso lucro diário. Meu poder era incrível: ser pequena podia ser ótimo para furtos, mas ninguém se intimidava comigo. Era diferente com o meu poder.
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As pessoas corriam aterrorizadas e, aos poucos, comecei e ficar famosa na cidade de Bahagash: os habitantes do submundo só falavam na garota monstro com poderes mágicos, que usava as sombras e a escuridão para capturar e devorar suas vítimas. Fui chamada de espírito maligno, filha do diabo, encarnação do mal e mil outras coisas assustadoras. Crimes que eu nunca tinha ouvido falar começaram a ser atribuídos a mim. Nunca me senti tão importante.
Tudo ia bem: eu gostava de ser temida. O dinheiro era mais que o suficiente para alimentar a mim e meus colegas de gangue. Todos eles me adoravam e me davam presentes, elogiando meus feitos. Eu podia ter continuado com essa vida para sempre; é o que eu teria feito, se minhas façanhas não tivessem ficado grandes demais, chamando a atenção dos olhos da lei.
Ironicamente, foi Salman Zadel quem me entregou.
O dono do Escorpião de Seda tinha negócios com os nobres de Bahagash e subornava seus fiscais e soldados. E não era segredo para ninguém que a maioria das minhas vítimas fazia parte dos Escorpiões. Foi somente uma questão de tempo até um de seus pivetes me identificar: meu rosto era conhecido entre as crianças de rua e Salman Zadel chamou as autoridades.
Me lembro bem daquele fim de tarde, quando eu voltei para o meu esconderijo depois de um dia muito lucrativo, apenas para encontrar todos os meus companheiros de gangue mortos sobre a areia.
Eu estava acostumada a perdas: havia perdido minha família em Lafel, e dezenas de outras pessoas que se afeiçoaram por mim no deserto. Havia perdido mais amigos do que podia contar, na vida agitada nas ruas. Ainda assim, quando vi minha gangue assassinada, fui tomada por uma raiva e tristeza tão grandes que as sombras se ergueram mesmo à luz do dia.
Mais uma vez eu chorei. Mas as lágrimas secaram rápido.
Assim que a lua saiu, me cobri com minha velha capa e saí para a noite jahrinesa. Não sabia direito o que estava fazendo, mas sentia aquele poder dentro de mim, implorando para ser libertado.
Meu destino era claro: o Escorpião de Seda.
Para a Nagi de 9 anos, a zona da cidade era um lugar fantástico: centenas de pontinhos luminosos enchiam a noite, cobertos com panos e papéis coloridos. Incensos perfumados tornavam o ar nebuloso. Mulheres maravilhosas, vestidas com véus e sedas transparentes que eu jamais conseguiria comprar, dançavam debaixo de portais em arco, seduzindo os clientes.
Homens vinham de muito longe para conhecer as cortesãs de Bahagash: desde que Lafel caíra junto com outras cidades próximas, Bahagash era a primeira grande cidade na rota para a capital, Jahlbaad. Eu sabia disso porque eu mesma fizera o trajeto de Lafel até ali. Não havia outra cidade decente no caminho: perto dos poucos vilarejos espalhados pelo deserto, Bahagash era uma metrópole. Ainda assim, ela não chegava a metade do tamanho da Cidade-Fortaleza de Lafel.
Eu passei pelos cabarés menores, na periferia da zona. As cortesãs me lançavam olhares de pena. Pareciam até mesmo compadecidas; afinal, muitas delas tinham sido meninas de rua na infância. Eu tinha um pouco de inveja delas, mas ao mesmo tempo, não queria ser uma. Sabia o que aquelas mulheres faziam dentro de suas cortinas perfumadas e definitivamente não queria isso para mim.
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Não demorou para o Escorpião de Seda surgir: lamparinas luminosas vermelhas e azuis sobre uma enorme fachada. Mulheres nuas dançavam dentro de gaiolas de ferro lustrado com óleo, capturando a atenção de todos que passavam. Outras cortesãs, trajando apenas véus e sedas transparentes, recepcionavam os visitantes enfeitiçados, convidando-os a entrar.
As garotas mais novas serviam chá e café e guiavam os homens que já tinham pago para esperarem do lado de dentro, sentados em almofadas caríssimas dentro de pequenos compartimentos, separados por cortinas e decorados com tapeçarias. Eu podia apenas vislumbrar o que acontecia pelos vãos das cortinas: em alguns deles, 7 ou 8 mulheres serviam homens bem vestidos, enquanto em outros uma única mulher seminua dançava para o prazer do visitante
Assim como acontecia com as cortesãs adultas, as crianças também não vestiam quase nada, apenas seda, véus e joias brilhantes. Salman as introduzia como aprendizes, mas eu sabia a verdade: ele as oferecia para seus clientes como produtos de luxo, frutos proibidos e extremamente caros.
Reconheci algumas delas das ruas: meninas que desfilavam orgulhosas com seus corpinhos magricelas cobertos de óleo lustroso, pegando os homens adultos pelas mãos. Senti vontade de voltar: não conseguia parar de imaginar que, em diferentes circunstâncias, poderia ser eu ali, no lugar delas.
As sombras agitadas aos meus pés, porém, me lembraram o que eu tinha vindo fazer. Vi de relance Salman Zadel em pessoa, cercado pela sua corja de cortesãs mirins. Ele conversava com um par de estrangeiros, vestidos com roupas estranhas, e parecia bastante animado. Aguardei até ele desaparecer dentro de uma de suas tendas, levando junto suas meninas.
Eu não podia mais esperar.
Quando as risadinhas começaram, fui até ele. Passei pelas cortesãs e desviei dos estrangeiros, que me olhavam com interesse. Ninguém me impediu. Porque fariam isso? Eu provavelmente era só mais uma das garotas do Escorpião de Seda, por mais que estivesse vestida com trapos.
Em instantes, eu estava diante de Salman Zadel. Afastei as cortinas de seus aposentos e entrei. Meus olhos caíram sobre aquele corpo velho e gordo, derramado em suas almofadas. Suas meninas pareciam tão confusas quanto ele, que me fitava com um olhar abobalhado.
-A Rata de Fogo. -ele murmurou, se dando conta de quem eu era. Vi a compreensão no seu olhar e também no olhar de suas meninas. Elas gritaram e se afastaram, instantes antes de meus tentáculos atacarem.
Salman Zadel morreu despedaçado.
Foi tudo muito rápido: a vingança não teve o sabor que eu desejava. Depois de matá-lo, meu peito se apertou e eu não consegui fazer nada além de encarar aquele quarto luxuoso, decorado com almofadas caras e sangue fresco. Fiquei ali por vários minutos, enquanto a gritaria e a confusão tomavam conta do lado de fora. Só voltei a mim quando os soldados já tinham cercado o Escorpião de Seda.
Tarde demais, percebi que não conseguiria fugir. Havia homens armados em todas as portas e eu era facilmente identificável: estava suja de sangue dos pés à cabeça. Não conseguiria despistá-los.
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Amaldiçoei minha estupidez; agora teria que sair pela porta da frente, o que parecia uma ideia ainda mais idiota. Eu me virei, pronta para lutar, quando dei de cara com duas figuras que já tinha visto antes: os estrangeiros que conversavam com Salman, logo antes de eu assassiná-lo.
-Cuidado com esses tentáculos, mocinha. -me disse o maior deles, um homem grande de meia-idade sem uma das pernas. Nenhum deles parecia surpreso em ver meus poderes em ação.
-Saiam da frente. -eu grunhi, sem entender porque eu simplesmente não os matava. A guarda da cidade estava prestes a invadir e eu não tinha tempo para conversar. Mas algo me impediu de atacá-los.
-Você está numa bela enrascada. -comentou o mesmo homem, coçando sua imensa barba castanha. -Mas podemos tirar você daqui, se quiser. Minha querida Donzela Tempestade, o navio mais rápido do mundo, está ancorada na região, pronta para zarpar. Te colocamos em um desses caixotes e saímos de fininho; já contrabandeei cargas maiores e mais pesadas que você.
Eu hesitei. Tinha aprendido a não confiar em ninguém, muito menos em homens que frequentavam o Escorpião de Seda. Além disso, não queria fugir da cidade; não de novo. Tinha péssimas lembranças com fugas e nenhuma vontade de abandonar Bahagash. O homem então pareceu ler minha mente.
-Sua vida aqui acabou. Ainda que escape hoje, os soldados vão caçá-la sem descanso. Cedo ou tarde vão pegá-la. Morrer seria um desperdício de seus talentos. Você tem um futuro brilhante pela frente, Nagi Amana. -aquilo me pegou de surpresa. Um estrangeiro sabia meu nome? -Sei tudo sobre você. Inclusive sobre seus poderes misteriosos. Você é a Sombra de Jahri; a Campeã escolhida para lutar na Ruína Dourada. Seu destino é maior do que bater carteiras nesse fim de mundo. Venha comigo, Nagi. A Donzela Tempestade nos aguarda.
Ele já havia me convencido; ainda assim, precisei perguntar:
-Quem é você?
O homem sorriu de maneira sinistra.
-Capitão Marcus Brando. Terror dos Mares do Sul. E Campeão de Lafiore.